31 maio 2006

Os dois grandes impostores

Os dois grandes impostores, os srs. Blair e Bush, não se cansam de bater com a mão no peito e a clamarem mea culpa, apesar de se referirem explicitamente a erros, tão explicitamente que tresandam a justificação pela invasão do Iraque, mistificada, no entanto, por questões de pormenor, por questões meramente tácticas e até por questões de linguagem. Segundo parece, desta vez, nenhum deles utilizou o argumento de que a história os ilibará, o que, diga-se de passagem, nem se trata de um argumento, mas de uma profissão de fé. E nisso, cada um tem a sua, mesmo que em vez de deuses se fale de invasões.
Blair insiste que não vale a pena voltar aos argumentos que determinaram a invasão, mas, invariavelmente, volta à invasão e aos argumentos, só que aos seus argumentos, discutindo motivações como se, aparentemente, estivesse a discutir o sexo dos anjos. Este retorno aos argumentos desculpabilizadores tem o seu quê de patológico e, no entanto, corresponde exactamente à patologia da guerra, sobretudo quando o que a justifica não passa senão da vontade de domínio, da necessidade de vingança, tudo isto submergido numa boa dose de paranóia, de arrogância e de desprezo pelas instituições internacionais como a ONU, onde o sr. Colin Powell se prestou a um dos maiores embustes colectivos de que há memória na história das relações internacionais.
Blair, da sua parte - até dividem os erros entre si, que é como quem diz, estamos nisto juntos, mas cada um tem culpas à parte… -, diz que o erro foi a desbaazificação completa, pois, tirou da vida do país os quadros de que o pós-invasão necessitava. Esqueceu-se de dizer que foi o Baas que desapareceu, que foi o exército, que foi a polícia, que foi a administração central, isto é, que acharam pura e simplesmente que podiam desmantelar um Estado para depois reconstruí-lo a partir do zero, sem mais, e à sua maneira. Bush, da sua parte, lamenta o erro militar que se chama Abu Grahib, como se as histórias de guerras não passassem por excessos de toda a ordem, a começar pela ordem do seu começo. O mais patético, contudo, é-nos dado pela autocrítica que o sr. Bush faz à sua «dura retórica» - quer dizer, texana e imperial - quando empregou expressões como procurar Bin Laden «vivo ou morto», ou desafiar a insurreição iraquiana, convidando a que «Eles que venham».
A grande conclusão é que o sr. Bush julga ter aprendido a lição, e qual menino bem comportado, até proclama que sabe o que tem de fazer: «Tenho de exprimir-me de forma mais sofisticada.» Diz ele, seriamente.

29 maio 2006

Um MIC para um milhão

Sabe-se como a quantidade de muita coisa afecta o discernimento das pessoas. Algo de semelhante está a passar-se com o MIC, o Movimento de Intervenção e Cidadania, de Manuel Alegre. O milhão de votos começa a pesar no Movimento, e antes que eles se vão embora, convém prendê-los e diferenciá-los com algumas normas e segundo alguma hierarquia, não se vá pensar que no MIC não se sabe distinguir os dirigentes nem diferenciar as bases. Sempre em nome do milhão! Assim, para os membros do Movimento estão previstos várias categorias, «fundadores, efectivos, de honra, cooperantes e participantes». Os estatutos do MIC também cuidam da sua preservação, prevendo sanções de suspensão de direitos ou exclusão. Quem já adivinhou o que se prepara com este MIC, foi Inês Pedrosa que terá confessado a sua pouca vocação para «hierarquias e clubes». A ideia de dar corpo, dar sentido a um episódio, de dar organização ao que foi efémero, é sempre uma tentação. Fazê-lo ainda copiando modelos de outra natureza como a partidária, é dar a mesma forma ao que os promotores quereriam diferente. Quereriam? Poderiam querer?

27 maio 2006

Quanto custa uma vice-presidência no PSD-Madeira?

Virgílo Pereira, vice-presidente da comissão política do PSD-Madeira cometeu a imprudência de discordar do dono do partido, Alberto João Jardim. Criticou os deputados do PSD à Assembleia Regional, por se comportaram de forma malcriada, como «autênticos garotos» ao proporem uma consulta psiquiátrica ao deputado do PS que tinha acusado de mafioso o sistema económico da região. Alberto João, evidenciando que estava por detrás, ou que, pelo menos, estava de acordo com a tão brilhante ideia de uma consulta psiquiátrica, exigiu a demissão de Vírgílio Pereira, que a negou. Em resposta, Alberto João manda instaurar um processo disciplinar e, logo de seguida, antecipa o congresso do PSD regional para poder afastar Virgílio Pereira da vice-presidência. Virgílio Pereira bem se pode queixar do autoritarismo» de Alberto João. Também pode lembrar que a «lei da rolha pode servir bem durante dezenas de anos, mas não será bem tratada pela história», aludindo à disciplina de ferro que Jardim impões aos seus correligionários de partido. E, no entanto, a dúvida que paira é a seguinte: o que é que esperava?! É que Virgílio Pereira não caiu de pára-quedas na Madeira, antes é um profundo conhecedor do tipo de política que Alberto João impôs no arquipélago, a prepotência democrática do quero, mando e posso, e se se deixou enredar nesta teia que o porá quase fora do PSD regional, deitando pela janela fora uma vice-presidência, que com Alberto João, de facto, não representava nada, mas que sem ele - tendo em conta que um dia o Chefe há-de reformar-se definitivamente - representaria muito, a responsabilidade é muito sua por ter trocado uma tomada de posição imediata sobre a garotice dos deputados do seu partido, por uma postura distanciada e paciente que lhe continuava a garantir o lugar da vice-presidência, sem ondas e até uma oportunidade. Assim, pouco calculista e envolvendo-se com o coração, Virgílio Pereira pode ter granjeado alguma simpatia pelo seu gesto nobre de crítica, mas excluiu-se de qualquer luta pelo poder dentro do PSD, nos próximos anos. Não se pode ter tudo ao mesmo tempo, sobretudo quando o Patrão tem o nome de Alberto João, que ainda permite que os seus inimigos o ataquem de fora do seu palácio, mas não admite que os seus mordomos não sejam obedientes.

24 maio 2006

Em defesa dos jornalistas estagiários

O «caso» provocado pelo livro de Manuel Maria Carrilho proporcionou, e bem, que a qualidade da profissão de jornalista fosse debatida, tal como vem sucedendo com outras profissões. É verdade que, agora, à volta da questão «qualidade» está tudo em jogo, ou um pouco de tudo do que respeita ao jornalismo. E é pena que a questão particular dos jornalistas estagiários já pareça tão menor que acabe por perder pertinência, quando, em contrapartida, não têm sido poucas as vezes em que os «jornalistas estagiários» aparecem como uma espécie selvagem à solta nas redacções, completamente desresponsabilizados e, na condição de estagiários, desorientados. Este cenário lamentável é o de estes jornalistas servirem de bode expiatório para desculparem os erros e irresponsabilidades cometidos por alguns dos outros srs. jornalistas que, desta forma, têm uma cobertura para a sua incompetência. Não é menos verdade que do «pecado» da incompetência sofrerão também alguns dos estagiários, mas cair na generalização (do Germano para o género humano, como diz E.P.C. citando Mário Cláudio) de que estes jornalistas, enquanto estagiários, estão sem orientação, desconhecem as regras da sua profissão, não conseguem conter-se para dar nas vistas, e, deste modo, seguem o princípio de que vale tudo, é, convenhamos, uma visão que desprestigia os «jornalistas estagiários» e também qualquer órgão de comunicação social onde tais situações se possam sequer imaginar ter lugar.

17 maio 2006

Identidade europeia II

Timothy Arton Ash defende uma identidade europeia de certa forma escondida, como uma espécie de segunda pele, uma espécie de segundo abrigo para usar porventura quando estiver fora da sua ilha. Primeiro sou inglês e depois é que sou europeu, diz ele. A identidade europeia é assim uma noção transcendente, imbuída duma metafísica a desvendar, duma «essência» tão inalcançável, que é permitido fingir que se gosta da Europa sem se saber do que se trata quando se fala de «ser europeu».
Pois bem. Investigadores franceses e alemães construíram um livro, História, para alunos finalistas do liceu, dedicado à abordagem dos dois países no pós segunda guerra mundial, a partir de 1945, já a utilizar no próximo ano lectivo. Para além deste livro de História, já estão planeados mais outros dois, que abordarão a história franco-alemã antes de 1945.Este projecto tem o apoio das autoridades francesas e alemães, como é natural num projecto com esta natureza. Ora, sabemos quanto a partilha de uma história comum é, historicamente, difícil de concretizar. Exemplos como os casos do Japão com a China e com a Coreia do Sul são daqueles em que tal projecto é inexequível devido à quase aversão endémica dos seus povos, resultado da história comum, e porque tais países, enquanto entidades autónomas, têm vias diferentes de afirmação de si próprios e nem o seu futuro imediato passa por uma União. A Europa, pelo contrário, enquanto projecto aglutinador de países, requer que estes partilhem e aprofundem as suas raízes, as desenvolvam e, com isso, criem cidadãos europeus que não precisem de andar a pensar se usam um dia a camisola da nacionalidade de origem, e noutro dia, se usam a camisola da Europa. Os alemães e franceses estão a resolver a questão da identidade europeia, construindo-a. Timothy Garton, como historiador, também pode ajudar.

16 maio 2006

Identidade europeia e nascimento português em Badajoz

Timothy Garton Ash promoveu o seu último livro em Portugal, deu uma conferência, e promoveu também a ideia de que estamos inapelavelmente condenados a ser europeus como segunda opção, isto é, que ser europeu equivale «sempre» a uma «segunda identidade». Ele próprio dá o exemplo aplicado ao seu caso: primeiro é inglês e, só depois, europeu. Reforça esta ideia, ainda, com outra sobre a condição de europeu, que não permite que se tenha «europeus muçulmanos», mas «muçulmanos europeus». Segundo ele, os europeus devem ter «cuidado quando são discutidos valores», quer nacionais, quer religiosos. E com todo este cuidado, só faltaria que Timothy Ash nos dissesse também que não conviria pôr em causa qualquer «valor» religioso, muçulmano, cristão ou qualquer outro, para não ofender ninguém, numa espécie de conclusão enviesada sobre a lição do caso das caricaturas, que, pelo contrário, mostrou à saciedade quanto a sociedade europeia não deve temer o uso prático dos seus valores seja contra quem for e a pretexto do que for.
De qualquer maneira, a ideia da segunda identidade remete, também, para a secundarização da identidade europeia, uma espécie de segunda pele que se usa em momentos especiais, ou não se usa sequer, porque a primeira identidade, a nacional, é o seguro que vale no caso daquela não servir, ser descartada ou extinguir-se (hipótese que não é tão inviável como isso). Além do aspecto da segurança da identidade, há da própria natureza d identidade, uma espécie de «essência», o verdadeiro ser da coisa, neste caso, o que é que dita a identidade europeia. A resposta de Ash não poderia ser mais ilustrativa: a nação particular de cada Estado membro. É isso que lhe permite falar de primeira e segunda identidade. Mas é justamente esta visão que faz com que a «natureza» europeia seja a geografia local, o que é exactamente a mentalidade que está por detrás da consideração de que um nascimento de um português numa maternidade espanhola de Badajoz faz com que o recém-nascido já não seja português, mas espanhol, levantando todas as suspeitas as resistências conhecidas. Assim, o que é determinante é o local, a naçãozita, a terrinha, a casinha. A casa da Europa é a minha casa, diz Ash. Enquanto disser isto, é óbvio que será sempre primeiro inglês e, em segundo lugar, europeu, tal como a mãe portuguesa não quer que o seu filho nasça em Badajoz com o receio de que lhe tirem a pele portuguesa e em seu lugar vistam uma espanhola, passando a ser primeiro espanhol e, só depois, português. E se «tiver de ser» e nascer em Espanha, a mãe portuguesa tudo fará provavelmente para que o seu filho nunca se lembre de tal facto, ou, pelo contrário, lembrando-o, mas para mostrar que apesar disso, apesar de ter nascido em Espanha, nunca deixou de «ser português». É tudo uma questão de crença. E esta juntamente com o «local» fazem as identidades que se quiser.

14 maio 2006

Os EUA são um país xenófobo?

A evolução da demografia norte-americana causa preocupações àqueles que vêem na crescente importância da comunidade latina, uma ameaça à «superioridade da tradição e valores anglo-protestantes». De facto, os emigrantes hispânicos tendem a ser cada vez mais em maior número e se o aspecto da ilegalidade da maioria dos que conseguem entrar já é uma dor de cabeça para as autoridades norte-americanas, agora levanta-se claramente um outro problema, semelhante àquele que o primeiro-ministro israelita colocou relativamente à convivência de judeus e árabes: tal como os árabes ganham demograficamente aos judeus, também os latinos ganham demograficamente aos norte-americanos. Ora, é precisamente este tipo de problema que S. Huntington levantou no seu artigo intitulado O Desafio Hispânico. Ele vê um imenso e contínuo fluxo de emigrantes da América Latina e especialmente do México» a desafiarem a «identidade tradicional americana» e a constituírem-se como a «grande potencial ameaça à integridade cultural e política dos EUA». Se é verdade que Huntington coloca a questão numa nação que pode ser dividida ao meio, «bifurcada em duas línguas e culturas», não é menos verdade que subjacente a este discurso está a questão fundamental: deixaremos «colonizarmo-nos» por esta gente? Deixaremos que tomem de assalto, pelo voto dos seus eleitores que ficarão em maioria, o poder, para além da nossa cultura, dos nossos costumes e tradições?
Bush já disse que não gosta do hino norte-americano cantado em espanhol. E Huntington vai desbravando o terreno, afirmando que uns EUA «assim», isto é, com uma maioria demográfica de origem latina, não é o «fim do mundo, mas os americanos [norte-americanos] não o deviam permitir» (Público, 7/05), pelo menos enquanto não se convencerem que pode ou deve ser assim.
É óbvio que Huntington nunca colocaria esta questão se os imigrantes nos EUA fossem, por exemplo, irlandeses. O termo que se usa para designar a atitude dos que não aceitam estrangeiros no seu território é xenofobia. O termo que se usa para designar a aversão a determinado grupo de pessoa devido a uma característica particular desses grupo é racismo. E um outro destes termos estão inscritos na forma peculiar com que Huntington colocou a questão da hipotética maioria de norte-americanos latinizados.

13 maio 2006

Marcelo Rebelo de Sousa, comentarista de futebol

Se a notícia não é falsa, e se, de facto, Marcelo presta-se também ao comentário do grande jogo, então as autoridades alemães e argentinas têm razão. Aquelas, porque terão decidido que, por uma escola estar perto de onde os futebolistas brasileiros vão viver durante o campeonato, os exames serão realizados posteriormente… Estas, porque, pela boca do sr. Ministro da Educação argentino, resolveram pespegar com uma televisão em cada sala de aula, sob pretexto de que, assim, os alunos já não têm a desculpa de faltar às aulas para verem os jogos do campeonato: têm os jogos dentro das salas de aula…
É claro que não é Marcelo comentar o que quiser que está em causa. Está em causa comentar futebol neste contexto de abastardamento das coisas, em que o que é principal torna-se secundário e vice-versa. Daqui a uns dias, talvez vejamos, também por cá, qualquer coisa semelhante no que respeita às aulas do básico e secundário que se prolongam até meados de Junho e que, dadas as circunstâncias, sem qualquer surpresa, bem poderiam ficar-se pelos inícios… libertando as criancinhas para outras preocupações, como a de ouvir o professor Marcelo a discorrer sobre futebol.

11 maio 2006

O Estado de Israel é racista?

O novo primeiro ministro israelita, Ehud Olmert, está determinado no desenho das novas fronteiras para Israel. Para ganhar por um lado, tem de ceder noutro. Então, argumenta Olmert: «Mas mesmo se os olhos dos judeus estão cheios de lágrimas, e o seu coração está despedaçado, temos de salvaguardar o princípio - temos de manter uma maioria judaica sólida e estável no nosso Estado.» (Público, 5/05) Este choro é o lamento pelos colonatos que os israelitas deixarão para trás e pelo sonho perdido de conseguir «salvaguardar todos os territórios da Terra de Israel», chegado que é o «dia em que é necessário desistir de partes da nossa terra». Portanto, o que ele deseja é «uma maioria sólida», impenetrável à mestiçagem, que não possa colocar em dúvida essa «maioria» clara de judeus puros, pois, em última análise, se assim não fosse, criava-se «uma mistura de populações [árabes e judeus] impossível de separar», e que deixaria em «perigo o Estado de Israel como Estado judaico.» Não só a mestiçagem traria os inconvenientes da mistura, como ainda, dado a taxa de natalidade da população palestiniana, onde uns e outros estivesse misturados, sabe-se de quem seria a maioria e, nesta visão apocalíptica, do que seria do Estado judaico. Claro que a população palestiniana não é mencionada porque isso seria reconhecer uma identidade ao «outro» feita a partir do «eu», quer dizer, fundamentar no «outro» o próprio «eu». Eliminando os «palestinianos» do discurso, Olmert afirma o Estado de Israel como se fosse por vontade própria e autónoma, como se os palestinianos não existissem, ou a existirem, não contassem para nada do que é a vontade judaica. Que judeus e palestinianos possam ansiar o mesmo que uns e outros, isso não conta nem parece interessar. Na guerra ou na paz, a discriminação começa sempre pela separação.
Percebe-se porque é que um judeu «genuíno» como George Steiner não queira ter nada a ver com a monstruosidade deste Estado de Israel.

07 maio 2006

Apontamentos de economia 8

A ignorância em economia

António Borges declarou, entre outras coisas, que há «uma extraordinária ignorância em Portugal sobre economia». Depois de criticar as políticas do Governo que sofrem, naturalmente, dessa ignorância, mostrou alguma dificuldade em perceber o fosso, cada vez maior em Portugal, entre ricos e pobres, e terá dito: «Não se percebe como há gente que está tão bem.» Ora, das duas uma: ou, de facto, como António Borges diz, anda gente por aí que «está tão bem» na vida; ou, pelo contrário, o que está mal é que existe muita gente por aí que não está assim «tão bem». Mas que exista o fosso entre pobres e ricos, tão acentuado em Portugal, mostra que, até nisto, as políticas seguidas foram incapazes de encontrar um certo equilíbrio que permitisse aos mais ricos não parecerem aristocratas junto dos mais pobres, e aos mais pobres não parecerem pelintras junto dos mais ricos. Por outro lado, geralmente, os custos da ultrapassagem da crise são assacados precisamente a quem não tem tanto para estar «tão bem». O que é original é António Borges surpreender-se, não percebendo como é que, para lá da gente que está mal, exista gente que esteja bem, como se fosse da história que, em tempo de crise, ninguém estivesse bem. Esta preocupação vira-se contra o próprio, pois, como bancário, sabe muito bem como é que há gente que fica a viver «tão bem», e se ainda tiver dúvidas, qualquer «colega» administrador do banco BCP lhe explicará que a possibilidade de cada administrador poder ganhar até cerca de 10% dos lucros do banco, não passa disso mesmo, de uma possibilidade, mas séria. António Borges quer continuar a questionar porque é que, por exemplo, estes administradores estão «tão bem» na vida? Com certeza que não é por acaso nem por ignorância…

06 maio 2006

Não gostar de Portugal

A ideia de que há portugueses (seriam 85%) que não se interessam por Portugal parece incomodar… alguns portugueses. «Como é que é possível?!», exclama-se. Primeiro, ser português e não gostar de Portugal é tão natural como viver numa casa não porque se gosta dela, mas porque foi a casa possível por entre a ordem de múltiplas circunstâncias que ditaram que essa fosse a casa comprada, arrendada, ou herdada. Segundo, ser português e não gostar de Portugal, hoje, pode ser um gosto genuinamente cosmopolita, pois, não sendo Portugal o país ideal para gostar, outro teria de ser, e, assim, esta disponibilidade para contrastar Portugal e outros países e concluir que Portugal não serve, é, ao mesmo tempo, sinal de abertura para o exterior, para além de Portugal, mesmo que seja por causa de Portugal. Finalmente, Portugal, hoje, é a periferia da Europa, um subordinado obediente de Bruxelas, a província de Bruxelas e de Estrasburgo, o que é uma boa oportunidade para que os 85% dos portugueses se sintam mais europeus que portugueses. Mais uma vez, é uma questão de vistas largas.
Quando chegar o próximo mundial de futebol, logo se verá como é que esses 85% deixaram de gostar de Portugal.

01 maio 2006

Da divergência nas elites e da sua ocupação do tempo

José Miguel Júdice afirmou que as elites portuguesas eram as mais egoístas do mundo, as com «menos sentido social», as mais «desinteressadas» e as «menos preocupadas com o sofrimentos dos seus concidadãos». Isabel Jonet não concorda e como prova apresenta números da imensa actividade do «seu» Banco Alimentar em prol dos mais desfavorecidos.
Podem ficar descansados os «mais desfavorecidos» porque, afinal, a ajuda das elites não está assim tão má como impressivamente Júdice quisera dizer. Por outro lado, apercebemo-nos de quanto esta é uma matéria que preocupa as elites, o que faz com que a sua «amigável» divergência não passe apenas de um mal entendido, pois, afina, trata-se de saber reconhecer o trabalho que já se faz (Isabel Jonet) e aquele trabalho que se desejaria que fosse feito (Miguel Júdice). E contudo, José Miguel Júdice tem razão ao levantar este problema. É que ele é inseparável de outro problema, este quiçá ainda mais gravoso do que aquele, ou pelo menos interdependente: o da ocupação das elites. Trata-se de reconhecer que uma característica das elites é a sua capacidade para terem muito dinheiro e muito tempo disponível. A óbvia escolha por uma vida de ócio é a tentação mais comum, mas isso não significa que de entre os que pertencem às elites, não exista quem se angustie, senão com a sua existência, pelo menos com a existência dos outros, e de entre estes, os que se angustiam com a existência dos outros mais desfavorecidos. É natural também que, assim, sejam das elites os cuidados críticos sobre a própria prática, e a defesa intransigente da ideia de que não cabe ao Estado nem a outras instituições, de forma exclusiva, cuidar dos que precisam, ou fingem que precisam. Em última análise, se assim não fosse, ficavam sem o seu trabalho caritativo de preenchimento do tempo. O que era um pena para tanta boa vontade, e todos nós sabemos como a boa vontade é essencial. Pelo menos, Kant disse-o.