19 novembro 2006

Servir ou servir-se?

Os Jaime Ramos, a família, têm uma empresa, o que é normal. Jaime Ramos, pai, e Jaime Filipe Ramos, filho, são ambos deputados, o que já não é tão normal e começa a parecer que algo se passa na Madeira como numa república das bananas. Quando é essa a empresa que, por «concurso público», ganha a campanha de promoção turística da Madeira para os próximos dois anos, então a questão muda completamente de figura e de estranho é necessário passar para o descaramento. De facto, quando é público que a Madeira atravessa uma época de suspeição nas suas contas, o governo regional entregar a promoção turística da Madeira à empresa do PSD, quando estão envolvidas verbas de 5,5 milhões de euros entre 2006 e 2009, é criar uma situação que permite as habituais corruptelas jornalísticas de «negócios pouco transparentes», «promiscuidade entre poder político e actividade lucrativa privada», «os mesmos a dividirem o saque», etc, etc.
Acresce ainda que a prova de que a independência não serve a Jaime Ramos é a capacidade que tem de sorver os dinheiros públicos através da empresa e do que for que lhe faça a vez. Mais grave do que isso tudo é a demonstração cabal que a família faz de que está na política para servir-se e não para servir. Não é por acaso que o regime de incompatibilidades em vigor no continente e nos Açores foi recusado na Madeira. É que esse regime poria em causa o sistema de trocas de interesses e de privilégios que tem vigorado implicitamente desde os primórdios da democracia na Madeira.

16 novembro 2006

Multiculturalidade nos hospitais e afins.

O 3.º Seminário Saúde e Educação - Intervir em Saúde em Contextos Migratórios serviu para equacionar a prática religiosa nas unidades de saúde, hospitais e outras. Para Maria Cristina Santinho, a «saúde e o bem estar das pessoas passa também pelo fomento de uma cultura da saúde adaptada à espiritualidade de cada um». Parece ser um princípio que pela sua bondade não deveria levantar qualquer problema. Mas, infelizmente, a experiência desmente essa bondade. Agora, de mansinho, fala-se em apressar o enterro de um corpo, como se não existissem regras, inclusive de ordem médica, para preceder aos funerais; fala-se do acompanhamento espiritual fora das horas de visita, como se os horários fossem um entrave e não tivessem qualquer papel na gestão e controlo das pessoas dentro de um hospital ou de outra unidade de saúde; fala-se da alimentação que pode não ser consentânea com determinadas dietas, como se estas especificidades devessem constar no menu das unidades hospitalares e outras unidades de saúde; fala-se da impossibilidade de aceitar sangue, como se as decisões sobre a vida fossem dependentes da religião de cada um; etc, etc. Depois, querer-se-á médicas escolhidas pelas doentes, menus de degustação, controlo dos actos médicos pelo doente ou representante, e todas as particularidades que a multiculturalidade alimentará democraticamente. Não há outras preocupações na humanização destes locais?

15 novembro 2006

O que vale Putin?

É fácil olhar com os nossos olhos para a Rússia e vê-la segundo a grelha de interpretação ditada pelos nossos interesses e preconceitos de ocidentais. Mikahil Gorbachov tem uma visão completamente diferente. Diz (DN, 3/11) ele que Putin herdou um país caótico e, do outro lado, uma única potência que também ficou à deriva. Putin «não é um modelo de democrata, mas se pesarmos bem numa balança, o bem vale mais do que o mal». Para ele, é uma «sorte termos Putin na Rússia»; «Putin como os meios que tinha, foi capaz de restituir ao país uma esperança»; «Putin foi e é importante. É graças a ele que o povo pode hoje aspirar ao futuro.»
Um «bem» que «vale mais do que o mal», uma «esperança» e um «futuro» para um país. O Ocidente não perde oportunidade para diabolizá-lo. Gorbacho, o homem do fim do império da URSS, vê-o como uma espécie de bem melhor que o mal que traz.

12 novembro 2006

A maldade chinesa

Quando é público que a China abre linhas de crédito para diferentes países africanos sem lhes perguntar se querem mudar de regime, estranha-se, mas aceita-se. Mas quando são tornados públicos os valores envolvidos nestas operações financeiras, o tipo de negócios estabelecidos, as alterações económicas que daí advêm, as matérias-primas que estão em causa, os níveis de desenvolvimento estimados e, por último, a percepção de que em África também se fazem sentir as oportunidades da globalização, e ainda por cima é organizada uma cimeira China-África, onde estão representados quase todos os países do continente africano, então, sobram as críticas contra a chinização da economia africana.
Na realidade, há aqui dois movimentos complementares: por um lado, há uma ponta de inveja por os chineses serem capazes de fazerem - e, aparentemente, com resultados - o que o ocidente não fez nem conseguiu fazer, que é tratar África e os países africanos como soberanos e capazes de celebrarem acordos económico-financeiros, e de gerirem, entregues a si próprios, tudo o que lhes interessa sem ninguém lhes dar lições de bom comportamento político; não se ouve dizer que a China presta ajuda financeira, mas que faz negócios. Ora, não era Tony Blair (e Bono Vox) que tinha a ideia de injectar milhões de euros de ajuda em África? Onde estão? Quando será? Estará a China a fazer o que o Ocidente quereria fazer, só que de outra maneira? Por outro lado, não quereria o Ocidente ter-se posto no lugar da China e substitui-la como a maior potência com negócios em África?
Depois, falar de democracia e de direitos humanos quando o estômago não tem nada para digerir, quando não há classes médias desenvolvidas, quando tudo falta incluindo a capacidade de sobrevivência diária, não deixa de ser, à sua maneira, uma caricatura da sensibilidade ocidental. Se se pensa que é preciso implantar primeiro a democracia e desenvolver depois, então mais vale convidar Bush e o que resta da sua administração para tratar do assunto.

11 novembro 2006

Pode o efeito democrata dos EUA chegar a Portugal?

Primeiro: a vitória dos democratas norte-americanos dando-lhes a maioria em ambas as Câmaras, não é, contudo, a vitória de um presidente democrata. O equívoco de que doravante os democratas e os republicanos estão condenados a entenderem-se parte do pressuposto de que, com esta eleição, os democratas passam a governar mais enquanto os republicanos passam a governar menos, numa intersecção que produz uma linha de governação média entre os dois partidos. Compreende-se a ideia: é uma forma de aligeirar as responsabilidades do presidente, transferindo-as para o poder legislativo democrata.
Segundo: em contrapartida, não quer dizer que o novo poder legislativo democrata não se faça sentir a ponto de obrigar o presidente Bush a arrepiar caminho pelo menos nas políticas mais controversas dos últimos tempos, e que suscitaram durante a campanha eleitoral o interesse do eleitorado e porventura determinaram a reviravolta eleitoral. Sinal óbvio dessa influência que o poder democrata passou a ter é a cabeça de Rumsfeld ter sido entregue como se fosse uma demissão , a cabeça de uma figuras bem representativa do que de mais sinistro tinha a afirmação dos EUA como a única potência global. Esta sobranceria norte-americana teve o seu apogeu nas circunstâncias que rodearam a invasão do Iraque e no modo como atropelaram as convenções internacionais, ajudando a criar divisões na comunidade internacional de que foram exemplo paradigmático a distensão entre os EUA e a Europa e, no seio desta, entre os países apoiantes da administração Bush e os que se mantiveram distantes da tentação norte-americana.
Terceiro: as políticas de uma potência como os EUA não se fazem sem os seus arautos pelos quatro cantos do mundo, sem os seus defensores primorosos e adeptos incansáveis sem sono, alguns dos quais sentem mais na pele a dor de servir bem do que os próprios norte-americanos. Esta gente que no seu afã laborioso de defesa das políticas norte-americanas consegue ser mais norte-americana do que os próprios, esta gente que é capaz de deixar de pensar com a sua própria cabeça para usá-la como caixa de amplificação das mensagens que o velho poder norte-americano transmitia, prestou naturalmente um serviço quiçá importante no que respeita à criação e preparação de uma opinião pública mais favorável àquelas causas, mas, na hora em que tudo tem de ser questionado, o lugar das pessoas deve ser posto à prova no sentido de se saber se os mesmos mensageiros devem ou não permanecer nos cargos que tão bem exerceram, no sentido de se saber se estão ou não aptos a desempenhar um novo papel nas novas condições criadas pela mudança inevitável do tipo de mensagem.
Quarto: é aqui que entram os mensageiros portugueses, os comentadores, os jornalistas, os directores de jornais. Particularmente, daqueles jornais que atravessam tempos conturbados pela necessidade de reestruturações, e em que todos os lugares ficam à disposição das administrações. Se a responsabilidade não é apenas daqueles que não têm poder de decisão, mas recai sobre os que decidem sobre a qualidade da mensagem, apregoando-a aos quatro ventos como prova da sua capacidade transmissora, como demonstração da eficácia da caixa de ressonância em que um jornal pode ser transformado, então, o director de um jornal assim deve naturalmente assumir as suas responsabilidades e demitir-se. Mesmo que isso não esteja escrito no livro de estilo. E mesmo que, agora, mude de opinião para acompanhar de mãos aparentemente lavadas os novos ventos.

08 novembro 2006

O argumento de Louçã

É intrigante que Louçã tenha dito que os bloquistas rejeitam discutir «conceitos abstractos de qualquer tipo» porque o que querem é saber se os portugueses «aceitam ou não que continuem a existir julgamentos». O que querem, diz Louçã, é que «as pessoas se confrontem com a sua consciência, sabendo que, qualquer que seja a sua opinião, não podem ser cúmplices da condenação das mulheres». (Público, 6, Nov.) Ora, a rejeição da discussão de «conceitos abstractos de qualquer tipo» só pode ser entendida em um dos sentidos seguintes:
1. Loução tem pavor dos «conceitos abstractos» e para pensar dispensa-os, o que é uma contradição nos termos, pois, pensar sem conceitos abstractos é capaz de ser um bocado difícil, ou mesmo de todo impossível. Pensar é abstrair, dizia Borges.
2. Mas porquê esse pavor? Lembrar-se-á Louçã do debate com Portas, na parte final, em que atirou que Portas não podia falar sobre o assunto (o aborto) porque não era pai, enquanto ele, Louçã, podia fazê-lo porque tinha uma filha? E que, no dia seguinte, os jornalistas tinham descoberto que o seu argumento final não passava de um argumento pessoal e de autoridade, e que tanto insistiram que Louçã viu-se forçado a reconhecer o seu erro, justificando-se pela falta de experiência neste tipo de debates?
3. Talvez que o que Louçã queira seja evitar, na discussão da campanha para o «sim» ao aborto, que o debate seja excessivamente técnico, enredado na retórica dos argumentos infindáveis, sejam a favor do «sim» ou a «favor» do não, em que cada argumento é mais forte porque «demonstrou» a fraqueza do argumento do adversário, ainda que nunca seja possível chegar a uma conclusão absolutamente verdadeira. Ainda assim, ainda que Louça possa pretender que não se discutam as teorias, as teses, os princípios que sustentam os diferentes argumentos a favor ou contra o aborto, isso não pode significar que a melhor via, sobretudo no que respeito ao esclarecimento, não seja aquela que passa pelo esforço de racionalização do problema e da sua compreensão teórica. Pode é não ser o caminho mais eficaz para o objectivo pretendido, mas isso é outro problema, o problema da eficácia de qualquer campanha. Depois, cada um usa os meios que julga dever usar…
4. É óbvio que Louça quer uma campanha condicionada ao seu argumento: As mulheres presas por abortarem provocam problemas de consciência. Ninguém quer ter problemas de consciência. Logo, descriminalize-se o aborto.
É um argumento. Mas não deixa de ser um argumento muito, muito fraquinho, sobretudo para orientar a racionalidade numa campanha pró IVG. A não ser que o propósito seja esse, o de não alimentar muitas «confusões» à volta do assunto e ir directamente ao que interessa, sem «conceitos abstractos».

06 novembro 2006

As palmas pela condenação de Saddam Hussein

A morte e a vida de Saddam desde que foi capturado e, em vez de morto, humilhado pela sujidade, desgrenhado, de dentes analisados em frente das câmaras de televisão, é uma história de moeda ao ar, de vencedores e vencidos. Politicamente, um julgamento justo de um regime e de um ditador, realizado com sentido de justiça e com todas as prerrogativas que qualquer arguido deste género pode ter em qualquer parte do mundo, um julgamento assim, seria uma forma de um povo ajustar contas com o passado e, simultaneamente, preparar o futuro. Nas condições em que se processou todo o julgamento, nas condições em que se processou toda a comédia do julgamento de Saddam, a sentença decretada e as reacções que se lhe seguiram, de Bush a José Manuel Fernandes, passando por Durão Barroso até ao Irão, são a amplificação em muitos decibéis do coro dos espectadores que decidiram participar na peça como se ela fosse a sua comédia. O alarido mediático da sentença e o cortina contínua de declarações a propósito, provocam o ruído mediático de contágio e ofuscam qualquer distanciamento, e preparam ainda o golpe seguinte, o do espectáculo que se seguirá com a continuação do julgamento pelos outros crimes de Saddam Hussein. O regozijo de Bush pela «jovem democracia» iraquiana só é comparável com o novo 25 de Abril que José Manuel Fernandes vê na última produção da «democracia» implantada no Iraque e que lhe permite ressuscitar a sua voz à volta dos assuntos deste país, tão calada que estava por de lá só sair miséria. Comparáveis ao coro destas vozes, incluindo a de Blair, que fala em processo limpo, só mesmo a saudação iraniana do regime de Ahmadinejad congratulando-se com a condenação.

05 novembro 2006

Sobre a CSI

A nova Confederação Sindical Internacional (CSI) apresenta-se como uma espécie de contra poder ao poder da globalização. Ela quer mudar «de forma fundamental, a globalização para que esta seja benéfica para trabalhadores e trabalhadoras, desempregados e pobres». Reivindicando uma «governação efectiva e democrática da economia global» e a reforma «fundamental das organizações internacionais implicadas, particularmente do Fundo Monetário Internacional, do Banco Mundial e da Organização Mundial do Comércio», a CSI adopta a postura do outro destas organizações, da organização que faz falta para contrapor àquelas uma orientação mais justa à economia, e às multinacionais «maior responsabilidade pelo impacto das suas operações na sociedade, no meio ambiente e nos direitos humanos». Todas estas intenções, não sendo nada de concretas, dão para tudo. Dão sobretudo para, apesar do posicionamento internacionalista da Confederação e da sua menção programática à «globalização capitalista desenfreada» e da sua afirmação da luta «para a emancipação dos trabalhadores e um mundo em que sejam assegurados a dignidade e os direitos de todos os seres humanos», escamotear o seu real papel: o da entidade mundial que negociará com as outras organizações mundiais a melhoria das condições dos trabalhadores no seio de um sistema que provoca a necessidade de reivindicar melhorias das condições de trabalho. Numa palavra, o sistema capitalista permanece intocável. Assim se percebe o agrado - em vez de fazer tremer essas altas instâncias decisórios da gestão do capitalismo - com que esta Confederação é recebida. É aquilo que se «podia pedir» diz Paulo Ferreira (Público, 2/11): a Confederação tem o ar de ser um «interlocutor válido».

01 novembro 2006

A greve de Coito Pita

O vice-presidente do PSD-Madeira (PSD-M), Coito Pita, declarou, na qualidade de deputado, a adesão do seu partido à greve de dois dias dos funcionários públicos convocada para a próxima semana. São várias as tropelias que este agente político comete:
1. Chama greve geral àquilo que é até agora e do conhecimento público uma greve dos funcionários públicos; portanto, se é «geral», é geral para a generalidade dos funcionários públicos; daqui inferir-se que é uma greve geral que até lhe permite «fechar o escritório» como prova pública da sua adesão à greve dos funcionários, vai um longo passo que o deputado não sabe dar porque desvirtua a realidade das coisas;
2. Ao colocar-se na posição de quem vai fazer greve, o sr. deputado pretende colocar-se na situação daqueles que lutam, através da greve, por melhorias dos seus direitos ou defesa do que já têm, como se em vez de pertencer à elite que controla o aparelho de Estado e que, portanto, ajuda a fixar o rendimento que é distribuído aos funcionários públicos, fosse mais um dos que se sentem lesados nos seus interesses;
na verdade, os seus interesses são lesados, mas a outro nível, que não ao da reivindicação salarial e outras minudências da função pública; as suas reivindicações são de outra ordem…;
3. Por outro lado, o deputado Coito Pita, enquanto deputado, não pode convocar greves, nenhum tipo de greves, pois, é suposto que o seu estatuto o coloque numa posição política que o impeça da tomada de posições conflituais deste género, como se fosse, para além de deputado, um desses sindicalistas que andam por aí a rebaterem todos os dias as decisões que o governo de Sócrates toma relativamente à função pública; o que é manifestamente uma incompatibilidade de interesses, de estatuto e de descaramento;
4. Afinal, o que o sr. Deputado faz mais não é do que sacudir a água do capote, endereçando uma suposta greve com a qual ele estaria de acordo e de que até era um participante activo, contra o governo de Sócrates, escondendo que o poder na Madeira está nas suas mãos e dos seus correligionários e que os madeirenses antes de poderem pedir contas à República, terão de pedir contas primeiro aos seus dirigentes regionais, isto é, ao governo de Alberto João e aos deputados do PSD, nos quais Coito Pita está incluído, com acrescidas responsabilidades ao nível de direcção e portanto de decisão.