16 fevereiro 2006

Críticas

A crítica, em geral, à sociedade e cultura muçulmanas é feita a partir do ponto de vista de quem se coloca na sociedade e cultura ocidentais e as considera melhores, superiores, ou mais perfeitas, omitindo deliberadamente todos os seus podres e as razões que exigem ou impõem que essas sociedades, por sua vez, também devem reformar-se tal como aquelas que são criticadas.

15 fevereiro 2006

O riso dos Deuses

De Frei Bento, em «O Humor sumiu-se» (Público, 12/02/06), resulta a ideia da impossibilidade divina do riso. Diz Frei Bento:
Se o riso é próprio do homem, que se passará com Deus? Já por si, esta interrogação parece blasfema. Deus não ri e é pecado rir de Deus: "Graças a Deus muitas, graças com Deus poucas."
No entanto, nunca Lhe faltaram ocasiões para se rir. Mas por uma espécie de mistura de respeito, de decência e de medo é suposto que Deus ou Yavé, ou Alá, ou o Absoluto ou o Eterno ou o completamente Outro... é alguém sisudo, grave e ameaçador. Rir é que não ri. Seja crente ou descrente, nenhum pintor ou escultor ousou imaginá-lo nesse despropósito.

Ora, existiu um senhor que não tinha problemas em rir com os deuses, ou mesmo rir deles. Até descobriu que eles se riam entre si, e de coisas sérias. Esse senhor era Nietzsche que, em Assim Falava Zaratustra, conta esta história:
Os antigos deuses acabaram mesmo há muito; e, em verdade, tiveram um fim bom, alegre, próprio de deuses!
Não se acabaram como um crepúsculo, até à morte – isso é perfeitamente mentira! Pelo contrário, um dia morreram… de riso!
Isso aconteceu quando a expressão mais ímpia emanou de um dos próprios deuses, ou seja: “Há um só Deus! Não terás outro Deus, além de mim!”
Um velho barbaças de um deus, um ciumento, descomediu-se a esse ponto. E, então, todos os deuses se riram, oscilaram nas suas cadeiras e exclamaram: “Não consiste precisamente a divindade em haver deuses, mas não um Deus?”

13 fevereiro 2006

Locke e as caricaturas

Jorge Almeida Fernandes escreve «A Cilada» no Público (12/02/06), artigo constituído, em parte, com citações de jornais de todo o mundo. A ideia forte do artigo é a de que os «europeus caíram numa cilada que eles próprios armaram e fere os seus interesses vitais em dois planos: a implicação da Europa no Médio Oriente e o modelo de integração dos muçulmanos». Coloca também uma questão importantíssima - «a que lei obedecem os muçulmanos europeus? – pela qual «passa o futuro da Europa». Mas, nos jornais citados, há esta frase de William Rees_Mogg, publicada no Times: «Nem Locke, o nosso grande profeta da liberdade, jamais teria defendido estes ofensivos cartoons».
O que é interessante sabermos é que o «grande profeta da liberdade» também escreveu sobre a tolerância e que, a propósito desta, no que concerne às relações entre igreja e Estado, estipulou a separação de ambas as instituições. Ao estabelecer os limites de uma e de outro, Locke pôde circunscrever o âmbito de actuação do poder político e legislativo relativamente à igreja, e igualmente circunscrever a esfera de competência da igreja relativamente ao Estado. Ao mesmo tempo, Locke podia elogiar a liberdade que os indivíduos dispõem, desde que ao seguirem a sua consciência, sejam capazes de se sujeitarem às consequências da lei que porventura não acataram em nome precisamente da liberdade de consciência. A liberdade tem mais valor que a lei, mas não é mais forte que ela. Mais ainda. A própria tolerância não deve ser encarada como a disponibilidade para aceitar e pactuar com o que viola precisamente essa tolerância. Locke soube, a partir da experiência do seu tempo, discernir o perigo de uma tolerância ilimitada e, em conformidade, decretar os seus limites. Na Carta sobre a Tolerância, Locke raciocinava deste modo: «em primeiro lugar, o magistrado não deve tolerar nenhum dogma oposto e contrário à sociedade humana ou aos bons costumes necessários à conservação da sociedade civil», ainda que pensasse que o bom «juízo do género humano» fizesse demover qualquer seita de levar «a loucura ao ponto de julgar que se devem ensinar dogmas em virtude dos quais os próprios bens, a paz e a reputação não estariam em segurança». Pois, mas o «juízo do género humano», ou bom senso, nem sempre é tão avisado como isso. Sabe-se hoje que se ensina o ódio nas madrassas muçulmanas e que, desde pequeninas, as crianças do Hamas e do Hezbollah se exercitam com armas. Em segundo lugar, dizia Locke, as seitas e pessoas que «atribuem aos fiéis, aos religiosos, aos ortodoxos, isto é, a elas próprias, nas coisas civis, algum privilégio e algum poder de que o resto dos mortais não dispõe; ou que reivindicam para si, sob pretexto da religião, certos poderes sobre os homens estranhos à sua comunidade eclesiástica (sublinhado meu), ou que dela de qualquer maneira se separaram, estas pessoas não podem ter o direito de ser toleradas pelo magistrado.» «Que outra coisa ensinam estas pessoas e todos os da sua espécie senão que, na melhor ocasião, tentarão usurpar os direitos do Estado, os bens e a liberdade dos cidadãos?», interrogava Locke. Não é verdade que uma das reivindicações muçulmanas recentes, a pretexto da ofensa religiosa, é a restrição da liberdade de expressão? Em terceiro lugar, avisava Locke, «a igreja em que cada um passa ipso facto para o serviço e a obediência de outro príncipe não pode ter o direito de ser tolerada pelo magistrado. Se tal admitisse, o magistrado introduziria, no interior das suas fronteiras e cidades, uma jurisdição estrangeira; e permitiria que entre os seus cidadãos se alistassem soldados para combater o Estado.» E exemplificava: «Em vão alguém se diria muçulmano só de religião, e súbdito, para tudo o mais, de um magistrado cristão, se professa ao mesmo tempo uma obediência cega ao Mufti de Constantinopla». Também os ateus, segundo John Locke, não deveriam ser tolerados… O que mostra à saciedade como a tolerância, de um modo ou de outro, corre sempre o risco de se tornar o seu oposto, sem que, no entanto, isso torne menos válido o princípio de que a tolerância também deve ter os seus limites, e que, assim, a intolerância é requerida precisamente contra aqueles que colocam em causa a tolerância.

10 fevereiro 2006

O dia mais longo de Vasco Rato

Vasco Rato conta (revista DIAD, 6/02/06) que o seu dia mais longo foi aquele em que, na Albânia, se viu ameaçado com uma metralhadora apontada à cabeça. O absurdo da situação era que Vasco Rato e companheiros (um fotógrafo e um guia local) foram acusados de comunistas. Diz ele que se «lembra de pensar que era surreal, morrer por pensarem que era comunista». Ele, uma pessoa de direita, apercebe-se, naquele momento, da ironia que era morrer comunista, como uma pessoa de esquerda. Não morreu nem sendo da direita nem sendo da esquerda, e ainda bem. Mas não deixa de ter a sua perplexidade pensar-se no incómodo que causa a possibilidade de morrer por causa de uma troca de identidade, no caso, política, e por outro lado, morrer com essa identidade trocada. Como se naquele momento de extrema intensidade dramática, no qual a vida se jogava, fosse importante esclarecer essa identidade e não morrer enganado. Sobretudo, não deixar que se enganassem, pois, disso dependia a sua vida.

09 fevereiro 2006

Tomadas de posição face à crise dos cartoons

A manifestação convocada por Rui Zink (e outros) junto da embaixada Dinamarquesa e o texto de Pacheco Pereira, «Mais vale verdes que mortos» (Público, 9/02/06), são um novo sinal, o de que uma nova fase se iniciou no processo português dos cartoons, passando-se da expectativa e da defensiva para a resposta sem tibiezas, isto é, mostram que chegou a altura de tomar posição de forma inequívoca a favor ou contra no imbróglio, procurando desemaranhá-lo, tornando-o mais claro e, sobretudo, obrigando a uma separação das águas entre os que se entretêm a proclamar piedosas intenções e os que julgam que é chegado o momento de dizer «basta» e enfrentar o touro pelos cornos, quer dizer, dar o nome devido às coisas. Quem tem medo fica em casa, ou muda de cor. Segundo eles.

Apontamentos de economia 2

Será, nos últimos dias, a segunda ou terceira vez que encontro a mesma citação de John Kenneth Galbrath:
Pode defender-se uma sociedade que procura satisfazer as suas necessidades. Mas a defesa perde o sentido se é o processo de as satisfazer que as cria.
É uma frase engraçada e plena de sentido. Pode-se lá imaginar que não se defenda uma sociedade pelo facto de o processo de satisfazer as suas necessidades ser o mesmo que as cria?
Não? Mas porquê? Que o processo de satisfazer as necessidades da sociedade seja o mesmo que cria essas necessidades, torna menos defensável essa sociedade? Qualquer sociedade é defensável se o que está em causa é esse processo de produção e de satisfação de necessidades, pois, não é possível ter-se um lado d moeda sem o outro: satisfazer as necessidades e criar novas necessidades não são duas coisas distintas, como se uma pudesse ser defensável e outra não, mas constituem dois processos num só. Nenhuma sociedade satisfaz as suas necessidades da mesma maneira durante muito tempo. A não ser que tenha parado no tempo, o que, isso sim, não é nada defensável.

02 fevereiro 2006

O destino da ironia

Bagão Félix confessa ao DIAD, 30/01/06, que o seu dia mais longo foi, afinal, não um dia, mas uma semana. Foi convidado para Secretário de Estado da Segurança Social no governo da AD de Sá Carneiro. Andou uma semana a matutar em qual resposta daria a Morais Leitão, que o convidou, quando este lhe telefonou dizendo que o seu nome já fazia parte da lista do futuro governo. Aí, Bagão Félix encomenda a alma a Deus e dá o facto como consumado: «Seja o que Deus quiser!» Uma semana para decidir e quem toma a decisão é outro! Depois, não consegue resistir à vaidadezinha pueril e ainda conta ao DIAD que passados anos foi a vez de ele convidar o filho do amigo que o tinha convidado. É um dia longo... de anos. E de vaidades cabotinas. Como a de Miguel Sousa que, na mesma revista, confessa candidamente que acumula o lugar de deputado regional com a presidência da Empresa de Cervejas da Madeira «por sugestão» de Alberto João Jardim…