Jorge Almeida Fernandes escreve «A Cilada» no Público (12/02/06), artigo constituído, em parte, com citações de jornais de todo o mundo. A ideia forte do artigo é a de que os «europeus caíram numa cilada que eles próprios armaram e fere os seus interesses vitais em dois planos: a implicação da Europa no Médio Oriente e o modelo de integração dos muçulmanos». Coloca também uma questão importantíssima - «a que lei obedecem os muçulmanos europeus? – pela qual «passa o futuro da Europa». Mas, nos jornais citados, há esta frase de William Rees_Mogg, publicada no
Times: «Nem Locke, o nosso grande profeta da liberdade, jamais teria defendido estes ofensivos
cartoons».
O que é interessante sabermos é que o «grande profeta da liberdade» também escreveu sobre a tolerância e que, a propósito desta, no que concerne às relações entre igreja e Estado, estipulou a separação de ambas as instituições. Ao estabelecer os limites de uma e de outro, Locke pôde circunscrever o âmbito de actuação do poder político e legislativo relativamente à igreja, e igualmente circunscrever a esfera de competência da igreja relativamente ao Estado. Ao mesmo tempo, Locke podia elogiar a liberdade que os indivíduos dispõem, desde que ao seguirem a sua consciência, sejam capazes de se sujeitarem às consequências da lei que porventura não acataram em nome precisamente da liberdade de consciência. A liberdade tem mais valor que a lei, mas não é mais forte que ela. Mais ainda. A própria tolerância não deve ser encarada como a disponibilidade para aceitar e pactuar com o que viola precisamente essa tolerância. Locke soube, a partir da experiência do seu tempo, discernir o perigo de uma tolerância ilimitada e, em conformidade, decretar os seus limites. Na Carta sobre a Tolerância, Locke raciocinava deste modo: «em primeiro lugar, o magistrado não deve tolerar nenhum dogma oposto e contrário à sociedade humana ou aos bons costumes necessários à conservação da sociedade civil», ainda que pensasse que o bom «juízo do género humano» fizesse demover qualquer seita de levar «a loucura ao ponto de julgar que se devem ensinar dogmas em virtude dos quais os próprios bens, a paz e a reputação não estariam em segurança». Pois, mas o «juízo do género humano», ou bom senso, nem sempre é tão avisado como isso. Sabe-se hoje que se ensina o ódio nas madrassas muçulmanas e que, desde pequeninas, as crianças do Hamas e do Hezbollah se exercitam com armas. Em segundo lugar, dizia Locke, as seitas e pessoas que «atribuem aos fiéis, aos religiosos, aos ortodoxos, isto é, a elas próprias, nas coisas civis, algum privilégio e algum poder de que o resto dos mortais não dispõe; ou que reivindicam para si,
sob pretexto da religião, certos poderes sobre os homens estranhos à sua comunidade eclesiástica (sublinhado meu), ou que dela de qualquer maneira se separaram, estas pessoas não podem ter o direito de ser toleradas pelo magistrado.» «Que outra coisa ensinam estas pessoas e todos os da sua espécie senão que, na melhor ocasião,
tentarão usurpar os direitos do Estado, os bens e a liberdade dos cidadãos?», interrogava Locke. Não é verdade que uma das reivindicações muçulmanas recentes, a pretexto da ofensa religiosa, é a restrição da liberdade de expressão? Em terceiro lugar, avisava Locke, «a igreja em que cada um passa
ipso facto para o serviço e a obediência de outro príncipe não pode ter o direito de ser tolerada pelo magistrado. Se tal admitisse, o magistrado introduziria, no interior das suas fronteiras e cidades, uma jurisdição estrangeira; e permitiria que entre os seus cidadãos se alistassem soldados para combater o Estado.» E exemplificava: «Em vão alguém se diria muçulmano só de religião, e súbdito, para tudo o mais, de um magistrado cristão, se professa ao mesmo tempo uma obediência cega ao Mufti de Constantinopla». Também os ateus, segundo John Locke, não deveriam ser tolerados… O que mostra à saciedade como a tolerância, de um modo ou de outro, corre sempre o risco de se tornar o seu oposto, sem que, no entanto, isso torne menos válido o princípio de que a tolerância também deve ter os seus limites, e que, assim, a intolerância é requerida precisamente contra aqueles que colocam em causa a tolerância.