A ética do lobo Paul Wolfowitz
Uma estranha obsessão pela «ética» parece fazer crer que nunca como agora se tiveram em conta os princípios éticos nas mais diversas acções da actividade humana. Mas quando se ouve falar de «ética» para aqui e «ética» para acolá, a propósito de tudo e de nada, é quando se deve pensar que a questão ética pode estar a ser cilindrada, exactamente por aqueles que mais parecem alardear uma preocupação desta natureza. É desta forma que se pode compreender o caso de Paul Wolfowitz, ex-presidente do Banco Mundial, um dos «neocons» mais badalados devido à sua influência neste grupo, e que acaba de ser despedido devido aos favores financeiros que proporcionou à sua namorada, contrariando as práticas e normativos do Banco. Formalmente, nada disto se passou. Wolfowitz não foi despedido, mas apresentou a sua demissão, admitindo, segundo os jornais, que teve uma «quota-parte» no sucesso dos «grandes resultados» para os quais ele e «todo o staff do banco» contribuíram. Normalíssimo. Cumprida a sua parte do trabalho, elogio e auto-elogio, e adeus, até à próxima. Só que não é do excesso de trabalho, nem dos resultados brilhantes que Wolfowitz se despede, mas sim da situação embaraçosa que ele próprio criou para si, para a namorada e para a instituição de que era presidente, o Banco Mundial. Ora, é porque ele usou a instituição em que trabalhava e, além do mais, presidia, que teve um inquérito para apurar a sua actuação em todo o caso, e que, por consequência, foi convidado a demitir-se. Numa última tentativa de salvar a face, obrigou a Administração do Banco a negociar os termos de uma declaração conjunta, que é o exemplo assumido da mais gritante hipocrisia que vai pela «ética», sobretudo quando ela serve para limpar a falta de ética nos comportamentos dos homens. A imprensa cita esse comunicado com expressões deste género: «O Presidente assegurou-nos que se comportou eticamente e agiu de boa fé para proteger o que considerava serem os melhores interesses da instituição». Ou: «Também aceitamos que outros envolvidos no processo agiram eticamente e de boa fé» (‘P’, 19/05). O que é que isto quer dizer?
Duas coisas. Uma, em primeiro lugar, quer dizer que o Banco e o ex-presidente optaram por negociar uma saída para a situação que minorasse os estragos o mais possível. Trata-se de salvar a face, e um processo negocial deste tipo tem um nome, o denominado «acordo ponderado», que permite que ambas as partes se fixem nos «ganhos mútuos», onde, aparentemente, ninguém perde e todos ganham. O lobo torna-se, através deste processo, um cordeiro, e na pior das hipóteses arrisca-se a fingir que tanto mérito não merece uma medalha… Ele, como se vê, até protegeu, à sua maneira, «os melhores interesses da instituição». Como é que poderia não ser assim?! Outra, a segunda, é que tudo isto, feito em nome da «ética», é a melhor maneira de provocar o descrédito na ética, seja o que for que esta palavra designe ou passe a significar. O que se sabe é que, se ela significa uma tentativa de responder à questão de Kant, «Que devo fazer?», nunca pode dar sentido e cobertura à acção de um lobo que se disfarça de cordeiro, como se não tivesse sido ele quem, para responder à pergunta de Kant, achou que o melhor que devia fazer era aumentar, pela calada e de forma escandalosa, o vencimento da namorada! Até na forma como negociou a saída, Wolfowitz mostrou que, apesar de assinar um papel que fala de ética e de boa fé, é um lobo cheio de boas intenções, e a sua «ética» um lenço de assoar e deitar fora.
Nenhuma ética consente que um indivíduo beneficie outro à custa de um erário que não é seu, quando, além do mais, a instituição em causa visa exactamente promover a ajuda, através dos países, a milhões e milhões de pessoas. Usar o Banco para beneficiar apenas uma, é gritantemente desonesto e injusto. Que a «ética» sirva para dar cobertura formal, institucional e política a um lobo destes, é de uma falta de ética a toda a prova, mas serve, simultaneamente, para se verificar que, nos tempos que correm, quando constantemente se socorre da ética para tudo e mais alguma coisa, o que se acaba por fazer não é senão banalizá-la, retirar-lhe o conteúdo moral, e, esvaziada desta maneira, esgrimi-la como uma bandeira que não apenas justifica tudo o que seja feito, como ainda limpa qualquer nódoa que pudesse ficar inscrita no currículo do malfeitor. Deste modo, a ética é transformada num mero detergente, para lobos e não só.