28 maio 2007

A ética do lobo Paul Wolfowitz

Uma estranha obsessão pela «ética» parece fazer crer que nunca como agora se tiveram em conta os princípios éticos nas mais diversas acções da actividade humana. Mas quando se ouve falar de «ética» para aqui e «ética» para acolá, a propósito de tudo e de nada, é quando se deve pensar que a questão ética pode estar a ser cilindrada, exactamente por aqueles que mais parecem alardear uma preocupação desta natureza. É desta forma que se pode compreender o caso de Paul Wolfowitz, ex-presidente do Banco Mundial, um dos «neocons» mais badalados devido à sua influência neste grupo, e que acaba de ser despedido devido aos favores financeiros que proporcionou à sua namorada, contrariando as práticas e normativos do Banco. Formalmente, nada disto se passou. Wolfowitz não foi despedido, mas apresentou a sua demissão, admitindo, segundo os jornais, que teve uma «quota-parte» no sucesso dos «grandes resultados» para os quais ele e «todo o staff do banco» contribuíram. Normalíssimo. Cumprida a sua parte do trabalho, elogio e auto-elogio, e adeus, até à próxima. Só que não é do excesso de trabalho, nem dos resultados brilhantes que Wolfowitz se despede, mas sim da situação embaraçosa que ele próprio criou para si, para a namorada e para a instituição de que era presidente, o Banco Mundial. Ora, é porque ele usou a instituição em que trabalhava e, além do mais, presidia, que teve um inquérito para apurar a sua actuação em todo o caso, e que, por consequência, foi convidado a demitir-se. Numa última tentativa de salvar a face, obrigou a Administração do Banco a negociar os termos de uma declaração conjunta, que é o exemplo assumido da mais gritante hipocrisia que vai pela «ética», sobretudo quando ela serve para limpar a falta de ética nos comportamentos dos homens. A imprensa cita esse comunicado com expressões deste género: «O Presidente assegurou-nos que se comportou eticamente e agiu de boa fé para proteger o que considerava serem os melhores interesses da instituição». Ou: «Também aceitamos que outros envolvidos no processo agiram eticamente e de boa fé» (‘P’, 19/05). O que é que isto quer dizer?
Duas coisas. Uma, em primeiro lugar, quer dizer que o Banco e o ex-presidente optaram por negociar uma saída para a situação que minorasse os estragos o mais possível. Trata-se de salvar a face, e um processo negocial deste tipo tem um nome, o denominado «acordo ponderado», que permite que ambas as partes se fixem nos «ganhos mútuos», onde, aparentemente, ninguém perde e todos ganham. O lobo torna-se, através deste processo, um cordeiro, e na pior das hipóteses arrisca-se a fingir que tanto mérito não merece uma medalha… Ele, como se vê, até protegeu, à sua maneira, «os melhores interesses da instituição». Como é que poderia não ser assim?! Outra, a segunda, é que tudo isto, feito em nome da «ética», é a melhor maneira de provocar o descrédito na ética, seja o que for que esta palavra designe ou passe a significar. O que se sabe é que, se ela significa uma tentativa de responder à questão de Kant, «Que devo fazer?», nunca pode dar sentido e cobertura à acção de um lobo que se disfarça de cordeiro, como se não tivesse sido ele quem, para responder à pergunta de Kant, achou que o melhor que devia fazer era aumentar, pela calada e de forma escandalosa, o vencimento da namorada! Até na forma como negociou a saída, Wolfowitz mostrou que, apesar de assinar um papel que fala de ética e de boa fé, é um lobo cheio de boas intenções, e a sua «ética» um lenço de assoar e deitar fora.
Nenhuma ética consente que um indivíduo beneficie outro à custa de um erário que não é seu, quando, além do mais, a instituição em causa visa exactamente promover a ajuda, através dos países, a milhões e milhões de pessoas. Usar o Banco para beneficiar apenas uma, é gritantemente desonesto e injusto. Que a «ética» sirva para dar cobertura formal, institucional e política a um lobo destes, é de uma falta de ética a toda a prova, mas serve, simultaneamente, para se verificar que, nos tempos que correm, quando constantemente se socorre da ética para tudo e mais alguma coisa, o que se acaba por fazer não é senão banalizá-la, retirar-lhe o conteúdo moral, e, esvaziada desta maneira, esgrimi-la como uma bandeira que não apenas justifica tudo o que seja feito, como ainda limpa qualquer nódoa que pudesse ficar inscrita no currículo do malfeitor. Deste modo, a ética é transformada num mero detergente, para lobos e não só.

24 maio 2007

SPGL e as razões para aderir à próxima greve

A «Direcção do SPGL» (Sindicato dos Professores ligado à Frenprof, agora dirigida por um sindicalista do PCP – o que não deveria ser importante, mas que no caso até é) fez publicar a sua propaganda, em que expressa a adesão à próxima greve geral, através de um anúncio que apresenta estas razões: 1. «gritantes retrocessos nos direitos laborais dos professores e educadores»; 2. «destruição da carreira docente» e consequente «desvalorização do trabalho directo com os alunos»; 3. um «pacote»: «aposentação», «roubo» na «progressão de carreira», «desemprego»; 4. «execrável campanha contra os docentes e contra a sua profissão», incluindo a denúncia de que «responsáveis do ME» acusam «os professores» de não se preocuparem «com as crianças».
De facto, esta de «responsáveis do ME» acusarem os professores de não ligarem às criancinhas não lembra ao diabo e, só por si, justificava uma boa greve, de modo a que tais «responsáveis» jamais se atrevessem a pronunciar tais baixezas… Mas não basta, é preciso mais, e aí estão razões em catadupa. O que é estranho é que cada uma delas é tão mais grave que a outra, e cada uma, outra justificação para greves sucessivas, que chega a surpreender como é que os professores andam tão sossegados e não se manifestam todos os dias e não estão em greve dia sim e dia não. Uma destas razões encerra uma contradição insanável: por um lado, diz-se que as novas carreiras com «professores titulares» à mistura, não prestam e é preciso acabar com elas, mas, por outro, denuncia-se também o ME por não permitir que a maior parte dos professores não se possa candidatar a essa mesma carreira de «professor titular» que está a mais! Pois, enquanto existir até pode dar jeito concorrer por ela, mesmo que se esteja contra ela…
Finalmente, «É pois urgente mudar de rumo» é uma palavra de ordem tão interessante como qualquer outra, mas já não é tão interessante e tão normal que essa palavra de ordem seja decalcada das que são usadas pelo matraquear da propaganda do PCP, quando reivindica a mudança de rumo da política do governo PS. Coincidências? Pois, como a de o dirigente da Frenprof ser militante do PCP, o que não é importante, mas que se torna importantíssimo quando esta estrutura sindical papagueia, em parte, os objectivos políticos do PCP.

21 maio 2007

Brzezinski e a «distância histórica»

Na recensão do livro de Zbigniew Brzezinski, «Second Chance», Diana Soller escreve, em «os Estados Unidos e a comunidade das democracias», ‘P’, 29/04/07, que este autor até vê bem o problema de como os EUA devem reformular a sua política externa de modo a ultrapassar os estragos provocados pela prática dos últimos anos. Mas acrescenta: «Só é pena que Brzezinski não consiga ter a distância histórica para avaliar George W. Bush com imparcialidade e não lhe reconheça o mérito de ter avançado uma política de alianças democráticas extra-Atlântico.»
Diana Soller ajuíza sobre o «mérito» de Bush com «imparcialidade» e prega a Brzezinski um raspanete por falta de «distância histórica para avaliar» Bush! E, a ela própria, qual foi a «distância histórica» que concedeu para reconhecer a Bush o «mérito de ter avançado uma política de alianças democráticas extra-Atlântico»? Em seu lugar, Diana colocou muita precipitação, à medida dos seus preconceitos. De facto, reconhecer, em 2007, a Bush, o «mérito de ter avançado uma política de alianças democráticas extra-Atlântico» revela paixão, mas pouca lucidez, requisito indispensável para avaliar «méritos» e não só.

11 maio 2007

Eleições na Madeira: o acordo entre eleitores e eleitos

Rui Moreira na sua «Crónica de uma vitória anunciada» (‘P’, 7/05) denuncia o papel que o povo madeirense tem na manutenção de Alberto João como presidente do governo regional. Para ele, «os eleitores madeirenses esquecem-se que, ao ignorarem os sintomas de nepotismo e de abuso de poder e permitirem que Jardim controle a comunicação social madeirense, viole todas as regras democráticas durante as campanhas eleitorais, opte pelas inaugurações tardias, insulte os adversários e recuse sistematicamente o debate, estão a tolerar a opacidade do poder, que é, no fundo, a negação da democracia». Pouco falta para que Rui Moreira diga que não há democracia na Madeira e que o povo madeirense vota na «negação da democracia», como se o «eleitorado» não existisse precisamente porque há eleições, e como se o simples facto de existir eleições não provasse o funcionamento da democracia. Portanto, não é a existência de democracia que está em causa, mas sim a qualidade dessa democracia, o tipo de democracia que foi construída na Madeira, que leva a que um povo, como diz Rui Moreira, participe sem remorsos na partilha do «saque corsário» promovido por Alberto João (o eleitorado madeirense é leviano. Ao garantir que Jardim se perpetue no poder, o eleitorado entrega a liberdade para garantir a prosperidade que lhe é concedida com o saque proporcionado pelas artes corsárias de Jardim).
Muitas vezes, esquece-se, por causa da facilidades da crítica àqueles que detêm o poder, que a democracia implica ou comporta governantes e governados, e que, se aqueles são constantemente sujeitos à crítica, estes raramente são criticados, talvez porque se assuma que se a democracia é o poder do povo, o povo é intocável, isto é, não está sujeito à crítica. O que Rui Moreira faz de diferente, é criticar o povo soberano, e com isso comete a heresia de criticar a fonte do poder democrático como muito levianamente se considera o «povo». Mas também aqui, o próprio Alberto João deparou-se com esse dilema: precisar dos votos da povo (para garantir a «legalidade democrática»), mas não reconhecer à «gente ignorante e iletrada» a capacidade para saber o que quer e, consequentemente votar de acordo com a consciência que tem das coisas. Como é que Alberto João resolveu este dilema? Satisfazendo o povo! Esse mesmo povo ignaro, iletrado e inculto, foi presenteado com todas as mordomias da mais diversa ordem, com as riquezas do «saque corsário» que levava a cabo e, dessa maneira, «comprado», eleitoralmente falando. Alberto João pôde dedicar-se às «obras» de um regime democrático construído à sua medida, quer dizer, de acordo com a sua vontade. O que resulta desta originalidade insular é a democracia tirânica, ou a tirania democrática, uma democracia real, onde, por um lado, há liberdade de expressão, de reunião, onde os partidos são aceites (até que o espantalho do modelo de Singapura se transforme em realidade), onde o povo é chamado para decidir, mas onde, por outro lado, esse mesmo povo está «comprado», dependente dos maiores empregadores da Região Autónoma, o Governo e a Câmara do Funchal, nos quais é de bom-tom não expressar a mínima suspeita de divergência, e, pelo contrário, a delação, o medo, a insegurança, a suspeita, são factores que tolhem a liberdade real de pensar e decidir com a sua própria cabeça. O Chefe – e em seu lugar, todos os outros subchefes que interpretam a vontade daquele – é que põe e dispõe, manda e desmanda, impõe a sua vontade e a sua arbitrariedade. Quando um só homem se arroga o direito e o poder de decidir da vida das pessoas, quer em minudências quer em questões importantes, exclusivamente em nome da sua vontade, tal homem é apenas uma coisa, um déspota. Mesmo que isso aconteça em democracia.
É este o lado negro da democracia madeirense. Portanto, não é apenas o povo madeirense que é leviano, é também o seu dirigente máximo que o é, quando cria as condições não para libertá-lo, mas para manipulá-lo, controlá-lo e mantê-lo debaixo do chicote e da cenoura.
Mas também não é menos verdade que não é tirando a cenoura que está o melhor remédio para a situação. O que o povo madeirense – pelo menos, um povo democraticamente adulto – não precisa é de canga, é de um chefe tirânico, é de um governante populista que julga que para se fazer entender pelo povo iletrado, tem de falar mal, tem de insultar, tem de agredir verbalmente, tem de utilizar uma linguagem rasca, como se o mesmo povo fosse tão estúpido que não compreendesse a linguagem do poder de outra forma. O que o povo madeirense não precisa é de este atestado de menoridade. Mas também se percebe que é esta menoridade que faz Alberto João, e que um povo e um governante acabam feitos um à medida do outro.
Nada disto tira o mérito a Rui Moreira pela sua crítica ao «eleitorado», coisa geralmente intocável.

02 maio 2007

Marçalo Grilo e a crítica

Marçalo Grilo está «farto» dos «políticos», «jornalistas» e «opinion makers», para além de estar cansado da maledicência e da crítica malévola» (‘P‘, 2/04). Não é normal um político, ou pelo menos um ex-político, um ex-ministro da Educação, ter destas opiniões sobre a crítica social e política, e, sobretudo, não é normal que esta opinião seja suportada pelas razões que Marçalo Grilo apresenta. Que se considere que a crítica exagera os aspectos negativos em detrimento dos positivos, que só vê uma parte, a má, esquecendo a outra parte, a boa, aceita-se e até se considera normal. Mas Marçalo faz mais do que isso, ele procura perscrutar as razões por que a crítica, portanto, os críticos são assim tão negativos. A primeira razão é a de que esses críticos, «não estando de bem consigo próprios», porque estão assim doentes, desprezam o país e o seu povo. Não «estar bem consigo próprio» equivale não apenas a uma espécie de baixa de auto-estima, a uma espécie de depressão, como ainda a uma espécie de problema de identidade, de falta de reconhecimento de si, e portanto, dos outros, pelo menos uma falta de reconhecimento saudável. Esta análise médica confirma-se quando Marçalo Grilo adianta que estes críticos, «para existirem», zurzem em «tudo e todos», o que em psicanálise equivale a dizer que o crítico é o paciente que só tem consciência de si porque se confronta com o princípio da realidade que o incomoda e não o deixa ser como ele gostaria de ser: debater-se com o mundo é a condição de «existir», o que significa que pôr-se de bem com o mundo equivaleria a começar a morrer… A crítica é condição da existência, como se isso «os [críticos] colocasse na História», terceira razão por que Marçalo não crê que a crítica possa ser genuína: eles querem ficar na História, mas também estão enganados, diz Marçalo, porque «na História só ficarão os que fizeram alguma coisa e isso só será avaliado e valorado daqui por muitos anos talvez mesmo daqui por algumas décadas». Desenganem-se, pois, aqueles críticos que esperariam a glória à saída da porta de casa, sem sequer terem morrido. A História, na versão de Marçalo, é bem mais rigorosa e exigente do que podem pensar os críticos. É óbvio que Marçalo não se vê como crítico dos críticos, nem imagina que a sua ideia de espalhar «Prozac e outros anti depressivos» na água canalizada de distribuição pública é, no mínimo, nos tempos que correm, assassina, talvez terrorista, tudo muito mais do que simplesmente bizarra ou irónica. Para um anticrítico não está nada mal…