Eleições na Madeira: o acordo entre eleitores e eleitos
Rui Moreira na sua «Crónica de uma vitória anunciada» (‘P’, 7/05) denuncia o papel que o povo madeirense tem na manutenção de Alberto João como presidente do governo regional. Para ele, «os eleitores madeirenses esquecem-se que, ao ignorarem os sintomas de nepotismo e de abuso de poder e permitirem que Jardim controle a comunicação social madeirense, viole todas as regras democráticas durante as campanhas eleitorais, opte pelas inaugurações tardias, insulte os adversários e recuse sistematicamente o debate, estão a tolerar a opacidade do poder, que é, no fundo, a negação da democracia». Pouco falta para que Rui Moreira diga que não há democracia na Madeira e que o povo madeirense vota na «negação da democracia», como se o «eleitorado» não existisse precisamente porque há eleições, e como se o simples facto de existir eleições não provasse o funcionamento da democracia. Portanto, não é a existência de democracia que está em causa, mas sim a qualidade dessa democracia, o tipo de democracia que foi construída na Madeira, que leva a que um povo, como diz Rui Moreira, participe sem remorsos na partilha do «saque corsário» promovido por Alberto João (o eleitorado madeirense é leviano. Ao garantir que Jardim se perpetue no poder, o eleitorado entrega a liberdade para garantir a prosperidade que lhe é concedida com o saque proporcionado pelas artes corsárias de Jardim).
Muitas vezes, esquece-se, por causa da facilidades da crítica àqueles que detêm o poder, que a democracia implica ou comporta governantes e governados, e que, se aqueles são constantemente sujeitos à crítica, estes raramente são criticados, talvez porque se assuma que se a democracia é o poder do povo, o povo é intocável, isto é, não está sujeito à crítica. O que Rui Moreira faz de diferente, é criticar o povo soberano, e com isso comete a heresia de criticar a fonte do poder democrático como muito levianamente se considera o «povo». Mas também aqui, o próprio Alberto João deparou-se com esse dilema: precisar dos votos da povo (para garantir a «legalidade democrática»), mas não reconhecer à «gente ignorante e iletrada» a capacidade para saber o que quer e, consequentemente votar de acordo com a consciência que tem das coisas. Como é que Alberto João resolveu este dilema? Satisfazendo o povo! Esse mesmo povo ignaro, iletrado e inculto, foi presenteado com todas as mordomias da mais diversa ordem, com as riquezas do «saque corsário» que levava a cabo e, dessa maneira, «comprado», eleitoralmente falando. Alberto João pôde dedicar-se às «obras» de um regime democrático construído à sua medida, quer dizer, de acordo com a sua vontade. O que resulta desta originalidade insular é a democracia tirânica, ou a tirania democrática, uma democracia real, onde, por um lado, há liberdade de expressão, de reunião, onde os partidos são aceites (até que o espantalho do modelo de Singapura se transforme em realidade), onde o povo é chamado para decidir, mas onde, por outro lado, esse mesmo povo está «comprado», dependente dos maiores empregadores da Região Autónoma, o Governo e a Câmara do Funchal, nos quais é de bom-tom não expressar a mínima suspeita de divergência, e, pelo contrário, a delação, o medo, a insegurança, a suspeita, são factores que tolhem a liberdade real de pensar e decidir com a sua própria cabeça. O Chefe – e em seu lugar, todos os outros subchefes que interpretam a vontade daquele – é que põe e dispõe, manda e desmanda, impõe a sua vontade e a sua arbitrariedade. Quando um só homem se arroga o direito e o poder de decidir da vida das pessoas, quer em minudências quer em questões importantes, exclusivamente em nome da sua vontade, tal homem é apenas uma coisa, um déspota. Mesmo que isso aconteça em democracia.
É este o lado negro da democracia madeirense. Portanto, não é apenas o povo madeirense que é leviano, é também o seu dirigente máximo que o é, quando cria as condições não para libertá-lo, mas para manipulá-lo, controlá-lo e mantê-lo debaixo do chicote e da cenoura.
Mas também não é menos verdade que não é tirando a cenoura que está o melhor remédio para a situação. O que o povo madeirense – pelo menos, um povo democraticamente adulto – não precisa é de canga, é de um chefe tirânico, é de um governante populista que julga que para se fazer entender pelo povo iletrado, tem de falar mal, tem de insultar, tem de agredir verbalmente, tem de utilizar uma linguagem rasca, como se o mesmo povo fosse tão estúpido que não compreendesse a linguagem do poder de outra forma. O que o povo madeirense não precisa é de este atestado de menoridade. Mas também se percebe que é esta menoridade que faz Alberto João, e que um povo e um governante acabam feitos um à medida do outro.
Nada disto tira o mérito a Rui Moreira pela sua crítica ao «eleitorado», coisa geralmente intocável.
<< Home