03 abril 2007

A identidade no jornal: assinaturas e Ferraris

Comecemos pelas assinaturas: uma é «Investigadora em assuntos judaicos»; outra, é «Investigadora em assuntos islâmicos». Esther Mucznik, a primeira, escreve as suas crónicas no jornal ‘P’, invariavelmente dedicadas à questão de saber quem são os bons neste mundo, chegando, não menos invariavelmente, à conclusão de que são todos maus à excepção de Israel e dos EUA. Por isso, diz, o «ódio a Israel e à América [quer dizer, aos EUA] oculta a barbárie do nosso tempo». O programa desta «investigadora » é assim claro como água, e o problema começa quando, por acaso, se interroga sobre qual o interesse duma crónica num jornal merecer a identificação da autora como «Investigadora em assuntos judeus». A autora, ou o jornal, ou ambos, fazem questão, vá-se lá adivinhar porquê…, sublinhar esta identidade sobre os «assuntos judaicos».
Então, Faranaz Keshavjee pode, no mesmo jornal, reivindicar - como o faz na edição de hoje - também a sua identidade de muçulmana, e escrever uma crónica pungente sobre a dilaceração da sua identidade, o que não a impede de assinar como «Investigadora em assuntos islâmicos»! Parece o contraponto de Esther, mas, na realidade, não o é, porque Esther tem o seu problema identitário mais que resolvido e aponta muito bem onde estão os seus inimigos: todos os que não são judeus, à excepção dos americanos judeus, enquanto Faranaz aparenta maior dificuldade em conciliar o seu destino e a sua identidade, reconhecendo, no entanto, que ninguém no Ocidente percebe a raiz das coisas dos muçulmanos e do islão porque são todos «ignorantes e mal-formados». Diz: «nem os líderes de opinião nem mesmo os nossos políticos (…) conhecem os muçulmanos que moram na sua própria casa.»
Uma e outra peroram a incompreensão a que os seus mundos respectivos são votados. Esther, sobre os resultados de uma sondagem em que Israel sai colocado numa nova espécie do «eixo do mal», lamenta a «distorção»: «É evidente que a natureza das perguntas e o momento em que são feitas condicionam parcialmente as respostas.» Faranaz, lamentando a falta de oportunidade para explicar o que realmente é e lhe vai na alma, e acusa quem geralmente pede aos muçulmanos «que tragam respostas às perguntas já de si fundadas em inverdades e ignorâncias».
Mas há mais coisas comuns em toda a linha, particularmente a militância na «extrema-esquerda». Enquanto que os que militavam por estas bandas, debandaram para a moda dos «neocons», Faranaz lamenta que quando alguém se atreve a dizer alguma coisa, seja acusada de ser de «“estrema-esquerda”,the men’s best friend isto é, “muçulmano”, anti-Ocidente, pró-terrorista, incivilizado».
Tudo isto porquê? Pela falta de amizade, de um ombro em quem confiar, da falta da palavra de conforto em vez de ódio, de compreensão. Mas escrevendo ambas como «Investigadoras», cada uma à sua maneira, no mesmo jornal, resta-lhes a consolação - há sempre uma! - do director respectivo, falando de Ferraris: «a interrogação que se nos colocava não era como se pode gastar tanto dinheiro numa futilidade daquelas: era de como tão poucos sabem como um Ferrari pode ser the men's best friends».
Não ficam aliviadas com esta visão e este desprendimento tão inofensivo com a identidade de um Ferrari?!