25 fevereiro 2007

O interesse de uma declaração de interesses no “P”-ípsilon

1. Inês Nadais escreveu a sua «Declaração de interesses» (“P”, 23/02), preenchendo o seu espaço ‘Luna Park’ com um rol de mercearia a avisar das suas preferências, presumindo que alguém estaria interessado nisso. Uma declaração de interesses não é isto, avisar que se viajou gratuitamente a Israel a convite da embaixada em Portugal, de modo a esclarecer o leitor? Inês Nadais não escreve as suas preferências a avisar os seus leitores? Que mais se lhe pode pedir?
2. É óbvio que neste caso não se trata de falta de inspiração, de a autora não ter mais nada para dizer e desdobrar a inocuidade em lista de gostos, pois, a ironia que se desprende da feitura desta lista, em contraponto com as «declarações sérias», não deixa de ser significativa: os meus interesses são múltiplos, tão múltiplos que dão para uma lista muito grande, mas naturalmente incompleta.
3. Não se trata também de ocupar espaço e ser original sem saber como, pois, uma lista destas é uma senhora lista, dá trabalho, exige inspiração e é uma montra de inclinações, e não é qualquer cronista que se apresenta com tanta exposição dando a conhecer as suas preferências, ou interesses.
4. Tão-pouco se pode considerar que tal rol de interesses possa ser inconsciente do sentido a que se presta no novo “P”. De facto, em vez de interesses existem preferências listadas, uma espécie de rol tão cheio que parece um texto tornado imagem, assim cheio, denso, compacto, que ilustra a foto da autora na página dos «Concertos».
5. Tudo isto é «transversal», passa tudo por tudo, nas páginas do jornal impresso, nas páginas do jornal na Net, com o leitor como «navegador» de um e de outro, compondo e interpretando à sua maneira a notícia de um lugar impresso e de outro digital, procurando sentidos nas listas de imagens, no rol dos textos, numas e noutros misturados, seguindo o princípio de que esta «transversalidade», a hibridez do papel e do digital, é que é a etapa seguinte - enquanto não for só digital - à do «só» papel. Nesta «coisa» que não é nada de absolutamente diferente, mas que não sabe, nesta fase, o que é realmente, parece que se torna imperioso conquistar leitores que se perdem à custa de arranjos gráficos que devem operar milagres, sem que se cuide dos que são ainda fiéis, no sentido dos que têm hábito de leitura de jornais em papel, dos que ainda sentem que esse é o seu modo «natural» de ler um jornal, e dos que lendo já o jornal em formato digital ainda têm a «mania» do papel e dele só se livrarão no outro mundo - se é que não há jornais também por lá… -, ao jornal em papel e aos que ainda não o sendo poderão vir a sê-lo se seduzidos para a diferença entre um jornal de «referência» e qualquer outro jornal. Ora, é esta diferença que deveria fazer toda a diferença, mais do que o suporte de papel ou digital, porque, sendo certo que, ainda durante algum tempo, os jornais se distinguirão por serem ou não digitais, não menos é verdade que eles se distinguirão como agora pela qualidade e a falta dela, e aqui não há volta a dar, com mais ou menos retoques de designers, de grafismos, e de vedetas: sem conteúdos de qualidade a «referência» não existe, e o jornal com mais ou menos declarações de interesses deixa de ter interesse. Uma declaração de interesses pode ser um sintoma.