10 fevereiro 2007

Da necessidade do «sim» no próximo referendo

Todos os argumentos contra ou a favor da despenalização do aborto a decidir no próximo referendo são louváveis, pertinentes e, às vezes, surpreendentes quer pelo subtilíssimo raciocínio quer pela brutalidade do discurso. Todos eles servirão, porventura, para sedimentar ideias, nuns casos, e, noutros, para abrir novas possibilidades de pensamento sobre uma causa que é tomada muito a peito, como se cada um tivesse um problema imediato por resolver no âmbito do tema em questão. É esta urgência de esgrimir argumentos que, juntamente com a necessidade de eles serem suficientemente convincentes e terem, assim, o efeito persuasivo pretendido, coloca o debate racional à beira da retórica estridente e ao sabor das emoções mais ruidosas. A convicção, o convencimento, a certeza impregnam de tal maneira os discursos que, às tantas, parece que se está perante a demonstração cabal de uma verdade científica, universalmente aceite e cuja evidência é de tal ordem que só a cegueira do auditório, ou a sua ignorância, impedem que seja capaz de perceber a mensagem clarividente que lhe está a ser apresentada, como se o auditório estivesse imbuído de uma espécie de má fé capital por não querer aceitar ou compreender o que de tão fácil, evidente e certo se apresenta. E, no entanto, todos esses argumentos são anacronicamente necessários.
De facto, a questão a que respeitam insere-se no movimento mais vasto que se prende com a libertação da humanidade de qualquer jugo, e com a ideia de que, dentro desta, há uma parte que sofre mais a subjugação do que a outra e que, assim, às mulheres é devida uma última esfera de influência, da qual ela se apropria na medida em que se coloca em igualdade de circunstâncias e de direito com o homem: nada deve tirar à mulher a liberdade que ao homem se coloca como adquirida e indiscutível. A luta pela igualdade de direitos entre a mulher e o homem, sendo portanto uma parte dessa emancipação da humanidade, ganha, no entanto, relevância em certos momentos históricos, não tanto pela originalidade do tema, mas pelo tom anacrónico com que é colocado, neste momento, em Portugal, o que é acentuado pela situação particular, ainda resultado do proteccionismo fascista, de uma igreja católica que tem um peso social no cuidado dos corpos muito superior ao do seu peso no cuidado das almas. Por isso é que o debate sobre as condições mais ou menos extensas que deveriam proporcionar o melhor bem para a mulher em condições de fragilidade, se transformam em estéreis angústias acerca da vida e da morte através do modo concupiscente como a igreja católica reivindica para o seu reduto a autoridade moral sobre a liberdade da mulher.
Contudo, nem se a decisão for a do «sim» se deve considerar o assunto por encerrado. Primeiro, porque o ideal de modernidade de libertação da humanidade falhou e esgotou-se. Segundo, porque este lugar de resistência, que é o da reivindicação dos direitos da mulher em igualdade com o homem, é um lugar espinhoso onde, abstractamente, tanto ela ganha pela sua maior liberdade como ela perde pela sua maior exposição à vulgaridade das suas razões. Até ao dia em que já não seja necessário.