25 julho 2006

Mulheres e futebol

A revista DIAD, 24/0706, divulga um estudo» sobre o acompanhamento televisivo do último Campeonato Mundial de Futebol por parte dos portugueses. Mexendo com vários critérios, do sexo à região do espectador, o «estudo» abrange vários campos, como o do «adepto português», o dos «jogos mais vistos», e ainda o das «apostas mais fortes» (publicidade). O que é interessante observar acerca do «adepto português» é que o «estudo» confirma o que intuitivamente se adivinhava desde 2004, concretamente, o facto de as mulheres estarem cada vez mais envolvidas neste desporto que durante tantos anos foi território de afirmação machista. O «estudo» dá 51,1% para as mulheres e 49,9% para os homens no visionamento dos jogos, confirmando que o crescente interesse das mulheres pelo futebol não está apenas em crescendo, como já alcançou o dos homens.
Ora, é esta continuação do despertar, muito súbito em Portugal, do interesse das mulheres pelo futebol que constitui o principal efeito plausível de entre os efeitos esperados à volta da participação da equipa nacional neste campeonato. O que fica testado neste «estudo» é a percepção de que esse envolvimento era cada vez maior e que estava a mudar para uma mais ampla participação feminina no que às coisas do futebol diz respeito. Em resumo: o futebol passou a ser um assunto também de mulheres.
Nada, no entanto, que as mulheres portuguesas não merecessem, dentro do espírito feminista e «pós-moderno» de igualitarização de géneros e democratização de gostos. Se ficam mais bem servidas, isso é outra coisa. Diga-se apenas que em contraposição à efeminização do homem, elas masculinizam-se. Troca justa?

21 julho 2006

O juiz e o Funchal Centrum

Uma providência cautelar tinha feito suspender, por decisão do Tribunal Administrativo do Funchal, as obras no Funchal Centrum. Esta decisão motivou duas ordens de leituras opostas. Uma, a do governo regional, pela boca do seu presidente, que vociferou contra decisões inimagináveis, a ponto de ter exclamado «Ao que isto chegou!» Outra, mais no âmbito da oposição e do jornalismo de reportagem (exemplo da revista “Visão“), classificava a decisão do Tribunal como uma «viragem» na lei e na ordem, pois, pela primeira vez, e ainda por efeitos do caso do deputado do PS cuja sanidade foi mandada analisar pelos deputados do PSD regional, a justiça estaria a dar mostras de não alinhar pelos interesses instalados nem oficiais e caminharia, na sua isenção, mesmo contra o governo regional se tal fosse necessário.
Ora, o juiz Paulo Gouveia, por sobre estes rumores, no despacho em que suspende a suspensão, salienta que numa «democracia séria», como provavelmente se referirá à democracia madeirense, as funções legislativa, executiva, administrativa e qualquer outra não se confundem, o que pareceria uma «verdade» ainda não «apreendida por vários sectores da política e da comunicação social». E fazendo prova da sua seriedade, Paulo Gouveia faz a defesa da sua causa, da independência da sua justiça, afirmando no dito despacho: «a justiça nos tribunais é feita através de um processo legal (…) sendo a judicatura um dos sectores mais fidedignos deste país improdutivo da União Europeia». Que a justiça, em Portugal continental e por extensão nas ilhas, seja «fidedigna», ninguém dúvida por todos saberem como é que funciona. Ela é «fidedigna» assim, entre aspas. Que esta justiça «fidedigna» seja feita neste «país improdutivo da União Europeia», eis outra verdade enviesada, pois, se o ser «improdutivo» quer dizer que «não produz», então o sr. juiz volta a não ter razão, e se confunde «improdutivo» com «baixa produtividade», então deveria rever os conceitos que utiliza no seu despacho. Mas, se a justiça reclama a independência em relação ao poder político, então, o sr. juiz talvez devesse coibir-se de comentários, nas suas decisões judiciais, de natureza política sobre a «improdutividade» deste país da União Europeia. A não ser que a sua estratégia seja a de afrontar a partir do reduto inviolável da sua posição judiciária, o que não abonaria nada na «seriedade» da democracia madeirense.

18 julho 2006

Advogados, detectores de metais, juízes e armas

Os srs. advogados portugueses encontraram mais um desafio à sua altura: discutir se a actual lei permite que passem pelo detector de metais quando visitam as prisões, ou se estão isentos. Eles acham que sim, que estão isentos. Compreende-se. Como supor que um advogado, um sr. advogado em pleno uso das suas prerrogativas deva submeter-se a essa quase humilhação de passar pelo detector, o que equivale a uma desconfiança em gente que, em princípio e sempre, está acima de toda a suspeita?
Em contrapartida, os juízes de Nova Iorque passaram a saber que a resposta à questão de poderem levar ou não, para o tribunal, uma arma disfarçadamente debaixo das suas vestes, é a de que sim, que podem fazê-lo, desde que o façam de forma a não perturbar a «confiança pública» nem a «integridade e imparcialidade do sistema judiciário».
Uma solução para o conflito que tanto apoquenta os advogados que visitam prisões em Portugal, poderia ser a de reivindicarem algo de semelhante aos juízes nova-iorquinos: subtilmente armados, mas de forma legal, quem os quereria obrigar a passarem pelo detector de metais?

17 julho 2006

De «O Fim da Pobreza», de Jeffrey Sachs

O autor de “O Fim da Pobreza - como consegui-lo numa geração”, Jeffrey Sachs, conta como a sua vida mudou quando recebeu um convite para trabalhar sobre o caos da hiperinflação boliviana dos anos 80. A esse propósito, narra que no primeiro ano em que foi professor, Jeffrey tinha como aluno David Blanco que tinha sido ministro das Finanças da Bolívia nos anos 70. O ex-ministro justificava-se «dizendo que estava a estudar para tentar entender exactamente o que tinha feito durante o seu mandato!» (pág. 150)
Quando o autor foi apresentar a Lech Walesa, em Gdansk, o seu plano de transição de uma economia socialista para uma economia capitalista, o autor conta a sua perplexidade face à insistência com que Walesa repetia a ideia de que não estava interessado em planos abstractos, mas queria saber se era possível instalar bancos estrangeiros em Gdansk. Até tinham lá «bons edifícios», só faltavam os bancos…
Para além destas situações caricatas, há outras, descritas por Jeffrey, que impressionam pelo seu quê de improvisação na resolução de assuntos que porventura se suporia mais atempados, ponderados e decididos com outro processo administrativo, portanto, burocrático. No plano do autor de combate à inflação constava a criação de um fundo social de emergência, para fazer face ao desemprego e ao apoio face à pobreza extrema. Conta, então, que pegou no telefone e ligou para o Banco Mundial, falou com Katherine Marshall, «a responsável pela equipa da Bolívia no banco», que respondeu imediatamente e assim, diz, num «breve período fomos capazes de criar o fundo social de emergência com o apoio do banco». (pág. 167) se estes apoios funcionassem sempre assim, com um simples telefonema…

16 julho 2006

Quando um líder envergonha

Ninguém está à espera que Bush, qual prestidigitador, seja capaz de melhorar a sua performance enquanto presidente dos EUA, e que seja suficientemente hábil, política e intelectualmente, para evitar fazer mais estragos do que aqueles que já fez e que mancham irremediavelmente a qualidade do seu trabalho, qualquer que seja o juízo menos exigente que sobre ele se possa fazer, excepto para os seus apaniguados e crentes, mesmo assim sempre mais silenciosos à medida que o tempo passa.
Desta vez, em terras russas e em reunião preparatória do G8, Bush, após a entrevista pessoal com Putin, achou que deveria tornar pública a sua conversa com o presidente russo e vai daí, declara aos jornalistas o seguinte: «Falei do meu desejo de contribuir para o desenvolvimento da democracia em diferentes países do mundo, como foi no Iraque, onde há liberdade de religião e liberdade de expressão. Muitos gostariam que semelhante democracia existisse também na Rússia.» Um presidente do Império que diz estas atoardas não é propriamente angélico, mas demoníaco, não quer a democracia, mas fachadas políticas que escondam os banhos de sangue no Iraque, não pensa sobre a realidade, mas sobre as suas fantasias e o seu próprio desejo, confundindo realidade e sonho. Quer dizer, Bush está em desvario completo e julga iludir os outros com as suas convicções. Putin respondeu-lhe deste modo: «Não quero para o meu país uma democracia como no Iraque». Resposta que terá tido o efeito de provocar uma gargalhada geral dos jornalistas presentes na conferência de imprensa dos dois presidentes.
Que uma gargalhada destas tenha feito Bush sentir-se pequenino, humilhado e medíocre, é o menos. Que o líder de uma grandiosa nação seja alguém tão medíocre, dá pena.

13 julho 2006

1.Jihad sem inocentes; 2.publicidade sem publicidade

1. O grupo terrorista Laskar-E-Toiba (Exército dos Puros) que actua a partir do Paquistão, negou os atentados de Bombaim. Apesar de ter um cadastro terrível no que respeita a terror, um porta-voz do grupo considerou os ataques bombistas em Bombaim como «massacres» que «são desumanos». Alegou ainda que o «Islão não permite matar inocentes». Para um grupo que foi responsabilizado por um ataque à bomba no mercado de Nova Deli com um resultado de 60 pessoas mortas, não está mal. Imagine-se se se dispõem a matar inocentes… No entanto, a contradição é evidente, pois a jihad faz-se contra os infiéis, nos quais se incluem os inocentes, e não contra os inocentes propriamente ditos, o que equivale a dizer que, para o terrorismo fundamentalista, só há inocentes reais no inferno. Aliás, a propaganda da Al-qaeda vincava que se os governos são infiéis ou servem os infiéis (Arábia Saudita, EUA, Iraque), então, os cidadãos que apoiam estes governos são tão culpados como os governos, logo, devem ser castigados também. É uma lógica primária que democratiza a culpa e o castigo. E nessa generalização cabem todos lá dentro. Os inocentes também.
2. M:ª João Avillez fez publicidade sem ter suspendido a sua actividade de jornalista. José Miguel Júdice, advogado da jornalista, acha que as coisas não são assim tão claras: «Que há publicidade [nas duas páginas], não há dúvidas, agora a crónica que a jornalista escreveu é que não é publicidade». O raciocínio de Júdice é subtilíssimo: o texto publicitário que Avillez escreveu é um texto como qualquer outro e pelo facto de se encontrar enquadrado num ambiente publicitário, isso não significa que o texto seja publicidade. Não há intenção, não há crime, diz Júdice, kantiano ferrenho. Mas, então, o texto é uma presença metafísica que só por acaso os mal intencionados - estes sim, com intenção - detectaram, inculpando Avillez de algo que não lhe passava pelo espírito. Júdice ainda objectará, quando disserem que, quer se queira, quer não, o texto foi usado publicitariamente, que a mensagem é o meio, e esse meio é independente do conteúdo objectivo e da intenção subjectiva, pelo que o meio é também a mensagem: um banco faz a publicidade e a publicidade um banco. Onde é que entra aqui a carteira (profissional) de Avillez?

11 julho 2006

Criticar a «autonomia» do homem, hoje

Em Valência, Bento XVI aludiu à cultura actual que «exacerba muitas vezes a liberdade do indivíduo, concebido como sujeito autónomo, como se se bastasse a si próprio». A concepção que Bento XVI tem do homem, obedece a uma antropologia, religiosa, é certo, mas datada, como se o homem ocidental continuasse a viver nos primórdios da sua civilização, ou no esquecimento de si na «longa noite» da Idade Média, e o iluminismo não tivesse existido, e Nietzsche não tivesse proclamado a plenos pulmões que «Deus morreu!», e a sua condição pós-moderna não fosse o prolongamento desses antecedentes, e não fosse necessário que este caminho actual do homem ocidental seja percorrido para dele desenvolverem-se outras saídas, porventura, entre outras, um novo regresso à religião que deixaria satisfeita a igreja católica.
É triste ver um homem barafustar contra o seu tempo, e de perceber que não é um homem do seu tempo, apesar de nele viver. E, no entanto, como seria leviano ficar-se apenas por essa contemplação confrangedora, quando, na realidade, o que está em causa nas palavras de Bento XVI é a concepção de liberdade do próprio homem, fundada na lei desde os gregos. Ao criticar a «autonomia» do homem, Bento XVI vai ao cerne da questão do que, segundo Kant, distinguia o homem de qualquer outro ser: a capacidade de pensar, de reflectir e de dar a si próprio, por consequência, a lei para si mesmo. Julgar a «autonomia» do homem, colocá-la na praça pública em jeito de leilão, maldizê-la, escorraçá-la, é tirar-lhe o que de mais precioso ele tem: a liberdade. E se no uso dessa liberdade ele se tornou autónomo de Deus e prefere o reino dos homens ao reino dos céus, isso não é o seu lado pior, mas o lado mais nobre e mais excelente. Qualquer papa, e qualquer fundamentalista religioso, nunca verá isto assim. Mas amanhã, os prosélitos do papa cantarão hossanas às suas palavras em ricos editoriais adornados com a condenação dos tempos «pós-modernos» e tecer-lhe-ão os maiores encómios pela sua aura intelectual de pensador dos nossos tempos…

10 julho 2006

Quantos mortos por um vivo?

«Exército israelita mata 20 palestinianos», dizem as notícias. Em princípio, cada morto do lado palestiniano é menos um hipótese para que o soldado israelita escape vivo do seu cativeiro. Mas isso não é senão mais uma no campo das conjecturas. Na realidade, os israelitas entraram em força na Faixa de Gaza, com ordens para irem ainda mais longe, numa espécie de reocupação do território que, não há muito tempo, tinha dado tanto trabalho a desocupar e, por outro lado, tinha também fornecido uma óptima oportunidade para uma intensa encenação mediática que mostrava a irredutibilidade das autoridades judaicas na acção magnânima de saída de Gaza. Agora, sob pretexto dos mísseis Qassam que voam cada vez mais longe e de forma cada vez mais perigosa, e do soldado raptado, os soldados de Deus, irados pela afronta, limpam tudo à sua frente, com a disposição de irem tão longe quanto a raiva e vingança o impuserem. A operação «Chuva de Verão», a sentença de que «ninguém dormirá em Gaza», a afirmação da força e da superioridade bélica contra os filisteus, são recapitulações bíblicas de que o «povo de Deus» precisa repetitivamente para poder garantir a sua expansão e sobrevivência contra quem se lhe oponha com ou sem razões, em nome de Deus e em nome de si próprio, porventura, «o povo escolhido» entre tantos.
Do outro lado, O primeiro-ministro palestiniano, Ismail Haniyeh, pode bradar contra aqueles que tanto apregoam a democracia e que agora não movem uma palha para defendê-la. Se este aspecto da «questão da democracia» é crucial, não menos importante é o aproveitamento que o Hamas pode fazer da condição de perseguidos a um nível praticamente intolerável, como é a situação de governantes e deputados do Hamas terem sido, por sua vez, raptados pelo Estado de Israel. A vitimização do Hamas com o governo meio raptado e as atrocidades sobre a população civil criam um ambiente propício à morte atrás de morte, à vingança atrás de vingança em ambas as partes. No meio da «confusão de loucos» (segundo um jornal israelita), quem é que se lembrará ainda do valor de uma vida judaica e de outras tantas palestinianas? Se o soldado for libertado quantos se lembrarão do preço em vidas de ambos os lados e da destruição? E, no entanto, depois disto, depois da matança, depois da justiça de Deus, quanta magnanimidade teria a sua libertação.

03 julho 2006

A «Chuva de Verão» e a tortura do sono

A memória ainda não deixou para trás que se esquecessem as torturas que a PIDE praticava, entre elas a tortura do sono, que consistia em impedir que um preso político, durante dias seguidos, pudesse dormir sequer alguns minutos. Para conseguir esse objectivo, os torturadores matraqueavam máquinas de escrever, batiam nos baldes, na mesa, e no próprio torturado. Interessava produzir o maior barulho possível com vista a manter a vigília forçada e quebrar desse modo a capacidade de discernimento do prisioneiro.
Agora, nos tempos que correm, estas práticas generalizam-se a regiões inteiras com 1,6 milhões de indivíduos a sofrerem em condições degradantes a mesma tortura. Mudam os meios, mas o resultado é o mesmo. Pior, se possível. É que, desta vez, a tortura do sono é oficial, é política de um Estado democrático e também fascista, de um Estado militarizado até à medula, de um Estado cuja prepotência é directamente proporcional ao sofrimento passado dos seus e dos outros contra quem vira a sua ira. Esse Estado é o de Israel, cujo primeiro-ministro, Ehud Olmert, mandou que o seu exército «intensificasse» as operações na Faixa de Gaza, como ainda fez questão se sublinhar que as tropas se devem assegurar de que «ninguém dorme à noite em Gaza». Para tanto, o exército israelita utiliza a explosão sónica de centenas de bombas de artilharia durante o dia e durante a noite.