11 julho 2006

Criticar a «autonomia» do homem, hoje

Em Valência, Bento XVI aludiu à cultura actual que «exacerba muitas vezes a liberdade do indivíduo, concebido como sujeito autónomo, como se se bastasse a si próprio». A concepção que Bento XVI tem do homem, obedece a uma antropologia, religiosa, é certo, mas datada, como se o homem ocidental continuasse a viver nos primórdios da sua civilização, ou no esquecimento de si na «longa noite» da Idade Média, e o iluminismo não tivesse existido, e Nietzsche não tivesse proclamado a plenos pulmões que «Deus morreu!», e a sua condição pós-moderna não fosse o prolongamento desses antecedentes, e não fosse necessário que este caminho actual do homem ocidental seja percorrido para dele desenvolverem-se outras saídas, porventura, entre outras, um novo regresso à religião que deixaria satisfeita a igreja católica.
É triste ver um homem barafustar contra o seu tempo, e de perceber que não é um homem do seu tempo, apesar de nele viver. E, no entanto, como seria leviano ficar-se apenas por essa contemplação confrangedora, quando, na realidade, o que está em causa nas palavras de Bento XVI é a concepção de liberdade do próprio homem, fundada na lei desde os gregos. Ao criticar a «autonomia» do homem, Bento XVI vai ao cerne da questão do que, segundo Kant, distinguia o homem de qualquer outro ser: a capacidade de pensar, de reflectir e de dar a si próprio, por consequência, a lei para si mesmo. Julgar a «autonomia» do homem, colocá-la na praça pública em jeito de leilão, maldizê-la, escorraçá-la, é tirar-lhe o que de mais precioso ele tem: a liberdade. E se no uso dessa liberdade ele se tornou autónomo de Deus e prefere o reino dos homens ao reino dos céus, isso não é o seu lado pior, mas o lado mais nobre e mais excelente. Qualquer papa, e qualquer fundamentalista religioso, nunca verá isto assim. Mas amanhã, os prosélitos do papa cantarão hossanas às suas palavras em ricos editoriais adornados com a condenação dos tempos «pós-modernos» e tecer-lhe-ão os maiores encómios pela sua aura intelectual de pensador dos nossos tempos…