21 janeiro 2008

A questão da palavra dada

O BE apresentou uma moção de censura ao governo de Sócrates, censurando neste a mudança de posição sobre o Tratado de Lisboa, que antes aceitara referendar e que agora apenas quer aprovar na Assembleia da República. Para Louçã, contudo, mais do que a questão do Tratado, estava em causa a «palavra dada», vulgo a «promessa eleitoral» ou o «compromisso eleitoral». Disse Louçã (‘P’, 16/01): «É o sentido mais profundo da responsabilidade em política que está em causa: saber se um político deve ser um matreiro que, uma vez no poder, o exerce em função do seu benefício próprio ou do seu partido, ou se, pelo contrário, o compromisso é uma responsabilidade irrecusável perante os eleitores».
Em primeiro lugar, há que observar que Louçã invariavelmente transforma as questões políticas em questões de moral e, portanto, de santidade. No poder estão os maus, aqueles que enganam, aqueles que são mentirosos, os oportunistas, os arrivistas, os demagogos, os defensores do capital, os interesseiros, os mandatários das grandes corporações, os gananciosos, numa palavra, todos os que são portadores de algum mal, os maldosos. Do outro, do lado do seu partido chamado Bloco de Esquerda, estão os bondosos, os desinteressados, os ingénuos, aqueles que apenas pensam a verdade, comungam a verdade e falam só a verdade, numa espécie de presciência aplicada à política a que só ele e os seus companheiros teriam acesso – eventualmente juntando alguns compagnons de route da área do PCP –, numa palavra, os santos. Aliás, a comunicação oral de Louçã, padece exactamente deste posicionamento beatífico que o faz parecer sempre com se de um padre se tratasse, pregando às almas desencaminhadas da luz o verdadeiro caminho…
Em segundo lugar, há que observar que esta atitude moralizadora de Louça corresponde à vacuidade política do seu projecto e do BE. É verdade que é um partido de resistência, de oposição ao governo, que ajuda à tomada de posições anti-autoritárias, que se posiciona ao lado das lutas dos trabalhadores, que tem uma visão libertária dos costumes contribuindo para a sua crítica e para a mudança de mentalidades através de propostas abertas à alteração do status quo social (a questão do aborto, por exemplo). Mas não é menos verdade que isso é exactamente aquilo que a ala esquerda do PS, ou a sua Juventude Em Maturação, poderia fazer sem que para isso tivesse de mudar de camisa. Aliás, foi a Juventude Socialista que em tempos foi pioneira nas chamadas «questões fracturantes», pelo menos a anunciá-las. Quer dizer que o BE e os seus dirigentes limitam-se a estruturar uma identidade de esquerda aliada ao progresso social na condição de deixarem intacto o quadro social que motiva todas as injustiças do mundo e que faz dos homens lobos de si próprios. O projecto do BE é um projecto inconsequente por perseguir a maldade do mundo deixando de fora as fontes da maldade tal como estão e que, intocáveis, são condição necessária para fundamentar a existência do próprio BE. Nesta medida, o BE e Louçã mais não fazem com o devido estardalhaço adequado a quem está a crescer, imenso barulho para chamar a atenção para a sua santidade imaculada e a tarefa de converter os perversos do sistema capitalista, sem tocar no próprio sistema. Por isso é que a radicalidade do discurso da denúncia não passa de retórica radicalizada. Falta-lhe, por um lado, a perspectiva da mudança radical necessária para pensar a alternativa ao mundo do capital. Sobra-lhe, por outro lado, a perspectiva burguesa de quem já está devidamente instalado no poder.
Finalmente, a denúncia por parte de Louçã da «matreirice» dos políticos, parte do pressuposto de que a intencionalidade é portadora de uma responsabilidade, independentemente das condições reais da sua concretização. Assim, a «palavra dada» adquiriria uma força coerciva tal que nem o próprio que a deu a poderia emendar ou anular, o que é tanto mais estranho quanto o que se pede neste situação seria que Sócrates fosse pretensamente infalível como deus e que não nunca pudesse arrepensder-se em nenhuma circunstância da palavra dada. O problema é que uma promessa em abstracto não é compatível com a sua realização concreta, a não ser que nesta realização se configurem os pressupostos da promessa adaptados à situação concreta. No caso, a situação concreta foi a de que, antes, o projecto de Constituição Europeia falhou devido à sua tentativa de aprovação democrática, e que, agora, precisamente para evitar a repetição desse falhanço, se optou por não dar directamente voz ao povo e aceitar que os seus representantes decidissem da aprovação do Tratado Constitucional nos respectivos parlamentos. Quer dizer que a classe política – aquela que os povos elegem para os representarem e dirigirem – escolheu deliberadamente prescindir da consulta popular e limitar a possibilidade que algum dos povos da Europa teria de, por si só, dar cabo de todo o processo de re-arrumação institucional da Europa. Mas quando aqui se chega, o que é importante notar é que a situação da «palavra dada» já está completamente alterada: Sócrates poderia antecipar o que se iria passar com o acordo sobre o Tratado? Deveria? Estas são hipóteses ingénuas que em nada ajudam a esclarecer a questão. O que interessa é que se passou, nesta análise, de uma metodologia que apontava para a intencionalidade e que, agora, se fundamenta nas consequências previsíveis, o que permitiu à classe política europeia pesar os dois pratos da balança: de um lado, o Tratado aprovado com o voto popular e o risco de algum país do conjunto dos vinte e sete, poder estragar todo o trabalho, e, de outro, o Tratado aprovado nos parlamentos e com o risco de em algum país isso não acontecer ser bastante diminuto. Numa palavra, o que vale mais: a promessa eleitoral feita em Portugal, ou o compromisso com toda a Europa? Nesta questão não há lugar à moralidade ingénua da palavra dada e da lógica das intenções. A única crítica plausível é a que se alicerça no facto de, assim, sem referendo, ser retirada mais uma vez a capacidade de os povos participarem democraticamente no seu destino. Mas quem é que disse que a democracia, tal como é entendida e é praticada na Europa ou por esse mundo fora, era uma coisa tão perfeita? E quem é que diz que a democracia à escala europeia não é para ser exercida senão quando há eleições e não para consultas deste género?
Para além destas questões mais essenciais do que a promessa vaga de um referendo sobre uma hipotética constituição, interessa perceber que, desta vez, a ideia de que um povo ou de que os povos podem não ser autores do seu destino nem autores das grandes construções institucionais e constitucionais do século XXI é algo de novo a ter em conta e que contraria a tendência do século anterior, dito «século do povo». E mais uma vez a Europa é pioneira…