02 janeiro 2008

A saúde, o tabaco e a tolerância

«Ninguém pode se forçado contra a sua vontade a passar bem de saúde ou a enriquecer.» Locke

Uma das posições mais assumidamente contra a interdição do tabaco é a que se expressa através da ideia de que, ao legislar contra o tabaco, o Estado está a imiscuir-se nas escolhas do individuo, na sua liberdade, e, por extensão, a estender a toda a sociedade a tentação asséptica: indivíduos saudáveis, mas sem liberdade; sociedade limpa, mas controladora («totalitária», para alguns).
O que parece difícil de entender é o facto de que, se tudo é permitido aos indivíduos (suicidar-se, esbanjar a fortuna, ser vegetariano ou gótico, ter 70 anos e continuar a julgar-se possuir ainda vinte, fumar, etc, etc), isso não significa que:
1. qualquer pessoa que queira suicidar-se se sinta no direito de obrigar os outros que a rodeiam a fazer o mesmo; o mesmo se aplica no que respeita ao consumo do tabaco, pois, o fumador continua a ter o direito de fumar, só não o devendo fazer em certas lugares e em certas circunstâncias, o que constitui uma protecção do espaço público;
2. tenha havido um impedimento legal e efectivo do consumo do tabaco em todos os lugares e em todas as circunstâncias, e muito menos, que o consumo do tabaco tenha sido proibido de todo, que é a ideia que alguns dos libertários empedernidos apregoam como se lhes tivesse sido tirado o cigarro da mão e tivessem ido presos por estarem a fumar na rua ou em casa.
E, no entanto, se é verdade que o espaço próprio e de cada um continua a ser do próprio para dele fazer o que quiser (de acordo com o princípio de que tudo é permitido – e mesmo assim com as necessárias restrições porque, por exemplo, a violência doméstica entre quatro paredes já é crime público, o que significa que mesmo dentro de casa nem tudo é permitido…), também não é menos verdade que a ingerência do Estado no espaço púbico, legislando contra o consumo do tabaco, constitui um forte indício do que aí vem, ou do que aí pode vir, para a liberdade e consciência dos indivíduos. De facto, há rumores em crescendo sobre os novos territórios a que o Estado chama a si para os normalizar através de legislação específica. Foi o território dos fumadores. Depois, será o território dos gordos; depois, o dos ouvintes de música alta, depois… O exemplo do problema da obesidade está a ultrapassar o estatuto de foro clínico para cada vez mais se inserir na teia social como um cancro que deve ser extirpado em nome dos custos orçamentais, sociais e médicos. À estigmatização social dos gordos o Estado responde com a institucionalização do que é a medida da normalidade e desta forma, reforça a estigmatização abrindo as portas da legitimidade para o despedimento dos gordos e para a sua discriminação a todos os níveis. Entre a estética e a saúde cai a proibição evangelizadora que por tudo vela, cuida e reprime. Ora, é este perigo de uma sociedade limpa, asséptica, normalizadora e uniformizadora que deve ser uma preocupação para quem preza o ideal da liberdade, em nome do qual é possível ser intolerante contra um Estado que não tolera.