A vitória de Maria Elisa
Não há erros nenhuns, na eleição de Salazar, como o «melhor» português de sempre. Há, em contrapartida, uma trama, uma história, um enredo, desenvolvendo-se ao vivo perante os nossos olhos, entretendo-nos ou porque violenta a consciência, ou porque a exalta e permite o júbilo. A terceira alternativa do entretenimento seria a da indiferença, mas esta não «pegou», porque a encenação do programa foi de mestre e sob a batuta de Maria Elisa, ganhou ares de caso sobre o qual alguns portugueses acharam por bem envolverem-se. Vários avisos foram feitos: 1. que era «apenas» um programa - que a RTP, profissionalmente, confirmou, amplificando o seu efeito sobre o carácter lúdico, ao mesmo tempo que, sem nunca desmentir isso, apostava tudo em tirá-lo do entretenimento e segurá-lo como uma realidade social e política à maneira de qualquer reality show histórico, visando mais longe, o sucesso junto do público, a participação do público, o envolvimento dos portugueses… as «audiências», a vitória do programa, a vitória de Maria Elisa, a vitória da RTP!; 2. que sendo apenas um programa, era um programa de «entretenimento» - o que constituiu uma hábil manobra para aparentemente desvalorizar o programa, e, simultaneamente, com a caução de alguma intelligentzia da classe culta portuguesa - sem pudor de participar em programas deste género e caucioná-los, obtendo, em contrapartida, o reconhecimento do seu estatuto junto do público e dos seus «pares» - promovê-lo com toda a eficácia como um programa diferente, culto, pedagógico, histórico, de resultados insondáveis a exigirem a participação de «todos os portugueses»; 3. que sendo «apenas» um programa de «entretenimento», ninguém levaria a sério que ele fosse levado a sério por quem quer que seja, a começar pela RTP e por Maria Elisa e a terminar em José Mattoso e em Eduardo Lourenço, estes últimos, pessoas de idoneidade também pouco séria, que anteciparam, cada um à sua maneira, os tempos apocalípticos que aí vinham a seguir ao programa: um disse que em Portugal o ensino de História era «lamentável»; outro disse que assim se dava a «morte simbólica do 25 de Abril»; 4. que sendo «apenas um programa de entretenimento para não ser levado a sério», dada a sua natureza, levantava problemas sérios, de carácter científico no âmbito de uma disciplina científica como é a História, e de carácter político no âmbito do passado recente português que poderia tender a polarizar-se em torno do «melhor português» qualquer que ele fosse, mas sempre numa óptica distorcida da própria realidade histórica que não se compadece de «melhores» de alguma coisa em absoluto, quanto mais quando se tratava do «melhor» de todos! A resposta foi a bipolarização extremista e ideológica entre aqueles portugueses que têm contas a ajustar com a história: «fascistas», por um lado, a contas com o que de pior se fez em Portugal antes do 25 de Abril, e «comunistas», por outro, a contas com o que não conseguiram fazer de pior em Portugal depois do 25 de Abril.
A contabilidade final de entre os portugueses que escolheram, com maior ou menor militância, fé ou convicção, o «melhor português» só pode premiar, em última análise, a estratégia de manipulação da RTP enquanto instituição, e a de Maria Elisa (e restante equipa) que regressada de um exílio dourado na política como deputada nas listas do PSD, e depois como «adida cultural» na embaixada portuguesa na Grã-Bretanha, soube mostrar que a doença que tanto pareceu perturbá-la no desempenho das suas funções, não a conseguiu vencer e não a impediu de pôr um país a falar do «seu» programa, do «seu» melhor português, e da «sua» casa de sempre, a «sua» RTP!
Do outro lado, do lado dos perdedores, estão todos os que por vaidade, por simples desaforo, por desafio e por negligência, se prestaram a dar corpo, voz e esforço intelectual a um programa cuja estrutura precisava de legitimidade para envolver os portugueses, e isso foi conseguido graças à anuência com que esta pequena parte da intelligentzia portuguesa se predispôs a participar na estratégia de Maria Elisa. A esses deve valer como contraponto a recusa de Vasco Lourenço em participar, depois de convidado, mostrando com a sua recusa que é possível sempre dizer «não»! Mas a verdade é esta: há sempre quem se deixe comprar, mesmo que isso não signifique dinheiro: basta satisfazer a vaidadezinha…