27 março 2007

A vitória de Maria Elisa

Não há erros nenhuns, na eleição de Salazar, como o «melhor» português de sempre. Há, em contrapartida, uma trama, uma história, um enredo, desenvolvendo-se ao vivo perante os nossos olhos, entretendo-nos ou porque violenta a consciência, ou porque a exalta e permite o júbilo. A terceira alternativa do entretenimento seria a da indiferença, mas esta não «pegou», porque a encenação do programa foi de mestre e sob a batuta de Maria Elisa, ganhou ares de caso sobre o qual alguns portugueses acharam por bem envolverem-se. Vários avisos foram feitos: 1. que era «apenas» um programa - que a RTP, profissionalmente, confirmou, amplificando o seu efeito sobre o carácter lúdico, ao mesmo tempo que, sem nunca desmentir isso, apostava tudo em tirá-lo do entretenimento e segurá-lo como uma realidade social e política à maneira de qualquer reality show histórico, visando mais longe, o sucesso junto do público, a participação do público, o envolvimento dos portugueses… as «audiências», a vitória do programa, a vitória de Maria Elisa, a vitória da RTP!; 2. que sendo apenas um programa, era um programa de «entretenimento» - o que constituiu uma hábil manobra para aparentemente desvalorizar o programa, e, simultaneamente, com a caução de alguma intelligentzia da classe culta portuguesa - sem pudor de participar em programas deste género e caucioná-los, obtendo, em contrapartida, o reconhecimento do seu estatuto junto do público e dos seus «pares» - promovê-lo com toda a eficácia como um programa diferente, culto, pedagógico, histórico, de resultados insondáveis a exigirem a participação de «todos os portugueses»; 3. que sendo «apenas» um programa de «entretenimento», ninguém levaria a sério que ele fosse levado a sério por quem quer que seja, a começar pela RTP e por Maria Elisa e a terminar em José Mattoso e em Eduardo Lourenço, estes últimos, pessoas de idoneidade também pouco séria, que anteciparam, cada um à sua maneira, os tempos apocalípticos que aí vinham a seguir ao programa: um disse que em Portugal o ensino de História era «lamentável»; outro disse que assim se dava a «morte simbólica do 25 de Abril»; 4. que sendo «apenas um programa de entretenimento para não ser levado a sério», dada a sua natureza, levantava problemas sérios, de carácter científico no âmbito de uma disciplina científica como é a História, e de carácter político no âmbito do passado recente português que poderia tender a polarizar-se em torno do «melhor português» qualquer que ele fosse, mas sempre numa óptica distorcida da própria realidade histórica que não se compadece de «melhores» de alguma coisa em absoluto, quanto mais quando se tratava do «melhor» de todos! A resposta foi a bipolarização extremista e ideológica entre aqueles portugueses que têm contas a ajustar com a história: «fascistas», por um lado, a contas com o que de pior se fez em Portugal antes do 25 de Abril, e «comunistas», por outro, a contas com o que não conseguiram fazer de pior em Portugal depois do 25 de Abril.
A contabilidade final de entre os portugueses que escolheram, com maior ou menor militância, fé ou convicção, o «melhor português» só pode premiar, em última análise, a estratégia de manipulação da RTP enquanto instituição, e a de Maria Elisa (e restante equipa) que regressada de um exílio dourado na política como deputada nas listas do PSD, e depois como «adida cultural» na embaixada portuguesa na Grã-Bretanha, soube mostrar que a doença que tanto pareceu perturbá-la no desempenho das suas funções, não a conseguiu vencer e não a impediu de pôr um país a falar do «seu» programa, do «seu» melhor português, e da «sua» casa de sempre, a «sua» RTP!
Do outro lado, do lado dos perdedores, estão todos os que por vaidade, por simples desaforo, por desafio e por negligência, se prestaram a dar corpo, voz e esforço intelectual a um programa cuja estrutura precisava de legitimidade para envolver os portugueses, e isso foi conseguido graças à anuência com que esta pequena parte da intelligentzia portuguesa se predispôs a participar na estratégia de Maria Elisa. A esses deve valer como contraponto a recusa de Vasco Lourenço em participar, depois de convidado, mostrando com a sua recusa que é possível sempre dizer «não»! Mas a verdade é esta: há sempre quem se deixe comprar, mesmo que isso não signifique dinheiro: basta satisfazer a vaidadezinha…

22 março 2007

Valentim Loureiro tem direito a falar?

O actual presidente da Câmara de Gondomar é arguido no processo Apito Dourado e foi pronunciado para ir a julgamento, o que não lhe retira, em princípio, a qualidade de cidadão para poder exercer o direito de expressão e falar como muito bem entender com quem quiser, quando quiser e como quiser. Claro que o uso da liberdade de expressão está limitado ao que seja de bom tom ele poder referir no âmbito daquele processo e do que o famigerado «segredo de justiça» lhe impõe. Portanto, se o sr. Valentim Loureiro quer pronunciar-se sobre o que quer que seja, nas televisões privadas, nos jornais, nas rádios, etc, e que o faça de livre vontade ou através da retribuição de um cachet, isso é algo que apenas lhe diz respeito e às autoridades no que concerne ao processo. Portanto, o sr. Valentim Loureiro tem todo o direito a falar como qualquer outro cidadão colocado em idênticas circunstâncias.
Agora, que seja a RTP1, televisão de «serviço público», paga com o dinheiro dos contribuintes, a entrevistar o sr. Valentim Loureiro, não é claro que seja admissível que tal aconteça por várias razões, a começar por aquela que respeita à condição actual do sr. Valentim Loureiro que, enquanto arguido, parece ter encontrado na jornalista Judite de Sousa e na RTP1 as melhores alianças para usá-las a favor da sua causa, misturando liberdade de expressão com o uso indevido dos meios de comunicação públicos para se defender contra as acusações do Ministério… Público!
Percebe-se, por outro lado, que a necessidade de atingir grandes audiências justifique todos os programas de baixa qualidade que abundam pelas estações televisivas, mas já não é lícito perceber-se, sem mais nem menos, que Judite de Sousa, usada por Valentim Loureiro, se preste a usá-lo com vista à realização da estratégia de entrevistas com personalidades que garantam, à partida, a conquista de uma ampla audiência e consequente êxito para o seu programa de entrevistas, com o beneplácito da direcção de programas da RTP1. Nem o argumento conjunto de que o sr. Valentim Loureiro serve os interesses de programação da RTP1 e de Judite de Sousa, por um lado, e que, por outro, a mesma RTP e a jornalista Judite de Sousa servem os interesses de Valentim Loureiro, se tem cabimento e justificação de qualquer natureza. Portanto, numa palavra, nada justifica o frete que a RTP1 e Judite de Sousa estão a fazer a Valentim Loureiro, pelo que a única decisão possível que ainda está a tempo de ser tomada é cancelar in extremis a projecção dessa entrevista, de modo a que a RTP1 e Judite de Sousa não possam ser acusadas de terem tentado branquear o arguido Valentim Loureiro antes do seu julgamento, e, dessa forma, terem contribuído para ser possível pensar-se que teriam algum interesse em construir uma imagem do entrevistado, através da oportunidade de um julgamento televisivo a pedido, à medida da pretensão do próprio sr. Valentim Loureiro.

21 março 2007

Retirar um primeiro-ministro do poder

«Chegaram os cinco [Cavaco, Guterres, Barroso, Santana, Sócrates] a primeiro-ministro sem uma experiência séria e pessoal do "monstro" que iam dirigir e com um absoluto desconhecimento do país. Cada um via Portugal e os portugueses pela sua pequena fresta (das Finanças, dos Estrangeiros, da Cultura ou do Ambiente). Não passavam os cinco de amadores, sem maneira de avaliar ou de medir o que lhes diziam e, como é óbvio, só nos deixaram sarilhos.
Surpreendentemente, esta sociedade obcecada com a segurança e a "excelência" não exige qualquer espécie de qualificação política ao primeiro-ministro. Não ocorreria a ninguém ser operado por um estagiário. Mas ninguém se importa de ser governado por um conspirador de sótão, um secretário de Estado da Cultura ou um ministro do Ambiente.» Vasco Pulido Valente (‘P’, 18/03/07)

A questão da «excelência» é muito bem colocada, no contexto dos ocupantes do governo, em Portugal, ainda que esta questão adquira maior força quando ela é vista respeitando, não em exclusivo ao governo português ou outro qualquer outro governo particular, mas ao governo, em geral, em qualquer lugar e em qualquer tempo, desde os primórdios, quando Platão, depois de pensar sobre o assunto, resolveu defender que a melhor forma de governo seria aquela que fosse constituída pelos melhores de entre os homens, o que, para ele, ia dar aos filósofos. Esta teoria dos filósofos-reis, teve, ainda recentemente, um acérrimo crítico em Karl Popper (que tinha mais com que se entreter do que com a tradição dos clubes ingleses que João Carlos Espada venera) que dizia, por sua vez, que mais do que optar pelos melhores, o que interessava era preservar as condições de retirada do poder aos que se mostrassem não merecedores dele, coisa que a democracia devia garantir (e que é fácil ver que não garante, mas isto já é outra coisa). Ora, o que VPV diz abertamente é que os últimos primeiros-ministros de Portugal têm sido pobrezinhos de espírito, sem «habilitações», sem qualificação tecno-científica-política de «excelência», e que ninguém se importa com isso, excepto ele. Pois, mas VPV sabe, também, que não é possível tomar de assalto a democracia, subvertê-la, e retirar, sem mais, aqueles que exercem o poder mesmo sem o merecer! Fazer isso seria escaqueirar a tão intocável democracia e provocar um chorrilho de atoardas acerca do espírito democrático. VPV sabe bem que não pode defender a democracia e, ao mesmo tempo, levar à letra aquilo que ele escreve, sob pena de passar de uma simples contradição teórica que ninguém leva a mal, para um grave delito de opinião pública contra as instituições democráticas.

10 março 2007

Jesus não cheira a enxofre...

O presidente venezuelano, Hugo Chávez, não se cansa de imitar o seu homólogo norte-americano no que à religião diz respeito. Um apela constantemente a Deus e à sua bondade para combater o eixo do mal, enquanto outro considera que o filho de Deus terá sido o «primeiro socialista da História», e que se fosse vivo usaria como ele uma «boina vermelha». Esta intervenção do divino na luta política não é novidade nem surpreende. Ahmadinejade, o presidente do Irão, não se cansa de retorquir a Bush que ele é o verdadeiro Satanás e que a América (querendo significar os EUA) é a fonte de todo o mal existente no mundo. E mesmo quando a Igreja Católica da Venezuela vem renegar a pretensão de Chávez, insistindo que afinal «Jesus não foi socialista» e que, portanto, «a religião cristã não pode vincular-se ao regime socialista, nem a nenhum outro», nada disto é inaudito e não ofende. O que é pouco vulgar é ver-se a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil declarar que vai «exorcizar com enxofre» os lugares por onde o presidente Bush deixar rasto, numa clara demonstração de incompreensão e má vontade pela bondade de Bush e da sua visita à América Latina. Ainda por cima, quem disse que Bush «cheirava a enxofre» foi Hugo Chávez, o que mostra como a Confederação dos Bispos brasileiros já foi contaminada pela linguagem de «libertação» do presidente venezuelano.

04 março 2007

Horário do comércio e horário dos museus

Há uma discussão em curso sobre os horários do comércio e mais uma vez reaparece o conflito entre os interesses dos «pequenos comerciantes» e os das chamadas «grandes superfícies». O que mais uma vez este conflito esconde é a inaptidão quase congénita de se abrirem os olhos mesmo durante a noite, isto é, a incapacidade de, quer uns quer outras, abrirem as portas e encerrarem-nas quando quiserem, desde que cumpram as regras do jogo e paguem as custas necessárias. O que nos grandes centros urbanos já é mais do que justificado: é imperioso. Senão, parece que se continua a viver com o horário de sol a sol, portanto, um horário do tempo da agricultura como actividade económica predominante.
A mesma tacanhez provinciana consegue prevalecer na órbita dos museus, obrigando-os a encerrarem por volta das 18-19 horas, como se a partir desta hora mais ninguém devesse ter o direito de ir a um museu. Ou se frequenta um museu entre as 9-10 horas até as 18-19 horas, ou não se frequenta, como se as 24 horas de um dia, para os museus portugueses, terminassem ali, às 18-19! Espantoso. Se há, na política cultural do país, alguma coisa de incompreensível e simultaneamente de escandaloso, esta situação típica do horário de funcionamento dos museus é concerteza uma delas.