31 março 2008

Da teoria à prática e vice-versa: o papel dos filósofos

Da teoria à prática e vice-versa: o papel dos filósofos
Carlos Fiolhais cita, no blogue De Rerum Natura, Harry Frankfurt, «professor na Universidade de Princeton, sobre o papel e o futuro da filosofia (ele tem em português um livrinho sobre a "treta", tradução do original "bullshit": "Da Treta", Livros da Areia, 2006). Começa assim o seu ensaio intitulado "Sobre a filosofia": "O papel dos filósofos consiste em procurar a clareza e a verdade. Não creio que os filósofos devam procurar um papel social ou político ou pensar neles próprios como intelectuais públicos ou sequer que tenham a responsabilidade de o ser. A sua responsabilidade principal é em relação à clareza e à verdade e à compreensão.”»
Se o papel dos filósofos fosse este, não se perceberia como é que Platão, um dos primeiros grandes filósofos gregos (Sócrates e Aristóteles são os outros dois grandes) teria, por um lado concebido a primeira utopia e, por outro, tentado levar à prática, empenhando-se pessoalmente nisso, as suas ideias, particularmente a do «filósofo-rei». No seu livro A República, Platão concebe o filósofo como o prisioneiro que, contrariamente aos seus colegas de cativeiro, consegue libertar-se e sair para fora da caverna e observar a existência de um outro mundo que ele desconhecia que existia. O ex-prisioneiro ficará extasiado e será tentado a permanecer lá, onde a realidade é bem diferente das sombras do interior da caverna. Mas Platão introduz aqui a passagem do conhecimento para a acção, da teoria do conhecimento para a ética: aquele que conhece a verdadeira realidade não é o que cruza os braços impávido como se nada se passasse à sua volta, mas o que regressa ao interior da caverna e que procura convencer os seus ex-companheiros de cativeiro, que ainda não tiveram oportunidade de saírem da caverna, que há lá fora um outro mundo. Tal é a obrigação do filósofo mesmo que isso represente a sua perda, isto é, mesmo que isso signifique que o possam tomar por louco, ou, ainda mais grave, que se aborreçam com as suas tentativas e o matem para se verem livre do incómodo que ele lhes causa. Não é inadmissível ver nesta concepção do papel do filósofo o exemplo de Sócrates, morto ironicamente pela democracia ateniense, pelos populares juízes atenienses, pelos representantes dos poetas, dos oradores e dos artesãos.
Claro que Sócrates enquanto filósofo representa ainda a filosofia da rua de Atenas, aquela que se processa através de combates verbais de perguntas e respostas face a um determinado problema ou tese, num encadeamento argumentativo em que Sócrates era exímio e temido. E, no entanto, era ele que anunciava que a última coisa em que quereria meter-se era na actividade política, alegando para isso que se por acaso nela se tivesse metido já há muito estaria morto!
Ora, pretender que o filósofo, qualquer que ele seja, se encerre na torre de marfim, se afaste do ruído do mundo e da multidão, não seria mais do que encerrá-lo novamente no interior da caverna, na assunção errada de que esse é o mundo da verdade e da realidade.
De qualquer forma, o caso de Sócrates mostra como a sua «responsabilidade principal» relativamente à «clareza e à verdade e à compreensão», é perigosa. Mesmo que não o queira.

29 março 2008

O apelo da caverna

José Miguel Júdice, ao contrário de David Justino que se retirou para a contemplação, sentiu o apelo da prática, a que se dá o nome de «dever de cidadania» e ainda de «participação democrática». Eis como Júdice descreve esse apelo (‘P’, ‘Virgens, avales e cinismo’, 25/5/2007):
«Não tenho dúvidas de que a solução mais cómoda ou prudente (ninguém podendo saber a priori qual a mais eficaz) é nunca descer do "plano etéreo", seja ou não Cassandra a figura inspiradora para essa (in)acção. (…) Mas a outra face desta moeda (da, pelo menos aparente, comodidade) é que algumas vezes se começa a sentir um difuso mal-estar, uma espécie de vergonha cívica, e a nossa alma é invadida por uma estranha espécie de urticária moral e de eczemas de responsabilidade social. Não resistir a esta pulsão ou comichão é, então, uma tentação e um desafio, que as mais das vezes acaba mal, com a sensação de que não valia a pena, que era inútil ou impossível, pelo caminho se sacrificando algum prestígio e alguma influência, ainda por cima num altar que se revelou ser de ídolos e não de deuses.
Eu sei que às vezes é assim, que também já mordi o chão e berrei para dentro, pela estupidez de ir atrás do que julgava ser o meu dever, como as crianças vão atrás do choro.»
O tom que Júdice apresenta no seu argumento distancia-se da esfera política para situar-se no da «responsabilidade social», invocando para tanto o seu estado de alma e até certas perturbações somáticas, incluindo também a sua dolorosa experiência passada. Mas é esta «outra face da moeda» que constitui um saber que dá a Júdice a coragem de se lançar no tédio do mundo, pois, não está enganado, sabe o que o espera e sabe que o nível a que se vai situar não é o dos «deuses» mas o dos «ídolos».
O contraste entre Justino e Júdice é flagrante: um sentiu-se farto do mundo; outro sentiu-se convocado pelo mundo. Desde Platão que os homens que ascenderam a uma espreitadela para o mundo que existe fora da caverna se sentem tentados ou a ficarem fora dela, ou a regressarem em força para o seu interior com vista a dissuadir os que ficaram a fazer como eles e a olharem também para fora e a saírem. Justino julga que fora da caverna é que é bom. Júdice interpelado pelas sombras do interior da caverna julga que mesmo correndo o risco da sua imolação na praça pública não pode recusar esse apelo. E eis como desde sempre o homem se dividiu entre ficar na simples contemplação, afastado da multidão, ou mergulhar na práxis da coisa pública. David Justino e Miguel Júdice são dois exemplos recentes destas duas atitudes que respeitam a diferentes concepções do seu lugar no mundo. Pelo menos em certas fases das suas vidas.

27 março 2008

O tédio do mundo e a torre de marfim

No DN de 19/3/08 pode ler-se uma transcrição do artigo de David Justino, ex-ministro da Educação, publicado no seu blogue: «Não imaginam o quanto se torna penoso ouvir alguns discursos sobre o ‘actual’ estado da educação em Portugal. Alguns deles chegam a raiar a ignorância compulsiva e uma incrível falta de imaginação, até para melhor disfarçar essa ignorância.» Deste «império do senso comum», Justino demarca-se recolhendo-se na meditação, «nas leituras, no conforto do tempo distante, naqueles cuja inteligência e capacidade de pensar os problemas não nos deixam dormir sossegados sustentando esta inquietude incorrigível de que não me consigo libertar».
Justino dá-nos a ideia do que é um homem do seu tempo farto e desgostado do seu tempo. A multidão que «acha» não pensa, não sabe, vive enganada, mas ele sabe que sabe e que a multidão não sabe. A única diferença em relação a Sócrates, o filósofo grego, seria a de que este não fugia da multidão, pelo contrário mergulhava nela para o confronto, enquanto Justino foge da multidão ignorante e do senso comum. Esta fuga permite-lhe o refúgio na torre de marfim, afastado do bulício dos homens comuns, contemplando o seu vão esforço e o inútil trabalho interminável desprovido de sabedoria. Permite-lhe, em compensação, apreciar o deleite intelectual de quem, ao mesmo nível que ele, soube pensar fora do alcance da multidão, de quem, como ele, foi capaz de profundos pensamentos, tão mais profundos quanto mais o deixam sem dormir. O tédio do mundo aborrece-o e ele boceja por isso.

02 março 2008

MIL a dar nas vistas

A definição do MIL: «O MIL: MOVIMENTO INTERNACIONAL LUSÓFONO é um movimento cultural e cívico recentemente criado, em associação com a NOVA ÁGUIA: REVISTA DE CULTURA PARA O SÉCULO XXI, projecto que conta já com quase quatrocentas adesões, de todos os países lusófonos.»
Enquanto movimento cultural e cívico, o MIL não se coíbe de alargar horizontes e, consequentemente, de ter uma agenda política-militar própria, uma espécie de visão geo-estratégica assente nalguma ingenuidade e, sobretudo, numa grande dose de voluntarismo. Só assim é compreensível a petição e os seus pressupostos que este movimento pôs a circular, com o objectivo de criar a famosa «força rápida de intervenção» a uma escala mais modesta, a do universo da lusofonia. Concretamente: «Os recentes acontecimentos trágicos em Timor-Leste deixaram uma vez mais evidente que existe a necessidade imperiosa de uma força policial e militarizada de manutenção de paz que, no quadro da ONU, possa agir no espaço da CPLP.» Há algum precedente que comprova no terreno a justificação de uma ideia destas? Há. «Esta força já demonstrou a sua necessidade durante o anterior conflito na Guiné-Bissau, quando uma pequena flotilha portuguesa foi capaz de realizar uma missão decisiva nesse país africano». Que outros efeitos benéficos se antevêem para a utilidade inquestionável desta força de prevenção e intervenção? Ora, esta «força policial e militar poderia, inclusivamente, potenciar a CPLP até um novo patamar de intervenção e participação no mundo e alavancar a defesa da presença do Brasil como membro permanente do Conselho de Segurança da ONU, bem como prefigurar, a uma nova escala, a formação de uma verdadeira Comunidade Lusófona, enquanto espaço de paz e segurança para todos os povos que o destino quis unir por esse fio de Ariadne chamado "língua portuguesa"»
Simples. Um «movimento cultural e cívico» que tem uma visão política do papel e lugar da lusofonia e da CPLP, e que julga que a melhor maneira de dar fôlego ao espírito da comunidade é exactamente começando por criar uma força militar, constituída com recursos de todos os membros da CPLP, capaz de intervir em qualquer zaragata que por aí aconteça. Melhor do que isto, de facto, só uma revista «de cultura» para esclarecer os fundamentos teóricos da aventura lusófona. E o uso de rede de informação de Filosofia, Lekton, para propalar tão aguerrida veia belicista…