26 setembro 2006

Nada está acima da lei

O juiz Jeffrey White, que condenou dois jornalistas norte-americanos por quererem «proteger» a identidade das suas fontes, disse: «nada está acima da lei».
Não tem razão o sr. juiz, pois, acima da lei está o poder de mudá-la. Chama-se a essa capacidade de fazer novas leis e alterar as consideradas convenientes, capacidade legislativa que se enquadra num determinado processo de poder político.
Os srs. juízes, lá como cá, não gostam de pensar que apenas são executores da lei, e que portanto acima deles próprios existem outros agentes que também lidam com a lei, aprimorando (essa seria a intenção…) as leis já existentes e produzindo outras leis consideradas necessárias que, depois, os srs. juízes devem aplicar e velar pela sua aplicação. Se não fosse assim não precisávamos de políticos para nada…

24 setembro 2006

O discurso de um «Membro da Comunidade Ismaelita»

Faranaz Keshavjee, membro da comunidade ismaelita, elabora Sobre o Discurso do Papa Bento XVI (Público, 18/09/06), a retórica seguinte. Primeiro, lamenta as reacções de «alguns muçulmanos» que pelo mundo fora tocam as raias da «irracionalidade», e reconhece que os «muçulmanos que «reagem de formas igualmente tristes e ridículas, reagem de forma invariavelmente ignorante». De seguida, vira-se para o papa e considera que «não esperava» que o «líder de uma religião seguida por milhões de crentes recorresse a um exemplo da história ignorando o pluralismo e diversidade da realidade como são as várias sociedades muçulmanas». A autora estabelece, deste modo, uma simetria entre a ignorância das «reacções dos muçulmanos» e a «ignorância» do papa sobre a realidade muçulmana.
O que custa verdadeiramente à autora é aceitar que os muçulmanos sejam tratados da mesma maneira. Ela não nega os «problemas no mundo islâmico». Ela acha «importantíssimo» que os muçulmanos procurem o «sucesso intelectual, tecnológico e científico». Ela «considera urgente» que os muçulmanos «façam um esforço para questionar muitos dos seus dogmas e aprendam a racionalizar a fé e a estimular as capacidades da razão». Reconhecer isto é, contudo, «diferente do que generalizar e amalgamar todos os muçulmanos» esquecendo o «pluralismo e a diversidade que os caracteriza», e é diferente de «posicioná-los a todos, indiferentemente, no pólo extremo da realidade moderna, referindo-se ao seu fundador como o causador de todos os males e violências da modernidade.» Isto, segundo a autora, é que é «um tipo de violência que pode promover outros tipos de violência». Ora, era precisamente aqui que Faranaz queria chegar. Para ela, a reacção violenta pode justificar-se e cita esta passagem do livro de Reuven Firestone: «A Guerra Santa é uma sub-categoria da guerra ideológica em que a agressão é levada a cabo contra as ameaças aos valores sagrados de uma visão do mundo». Acabará o seu artigo prevenindo: «é preciso ter cuidado como que dizemos».
E a questão é esta: podem as palavras do papa serem pretexto para uma «guerra santa»? Para a violência das ruas? Para a chantagem dos «pedidos de desculpas»? A ironia é a de que as palavras do papa criticavam precisamente o facto de Maomé ter espalhado a mensagem da jihad. A autora alega ainda que o papa «escolheu falar dos outros e preferiu ignorar os erros da sua própria igreja», e acrescenta que esses erros «se vão repetindo, de resto até hoje». O mesmo é dizer que pelo facto de existirem erros num campo, deduzir-se-ia que este campo ficava impossibilitado de criticar os erros de outro campo, o que é manifestamente redutor sob o ponto de vista da legitimidade da argumentação. Não querer que se discuta, é uma coisa, e isso fá-lo agora o islão como já o fez a igreja católica. Seleccionar quem pode discutir é outra, e esta selecção, a haver, não pode ser feita por uma das partes interessadas. O mundo islâmico não pode querer fixar quem pode ou não pode criticá-lo, nem o que pode ou não pode ser criticado, por muito que se alegue que as palavras são violentas. Pior que a violência das palavras é o tabu que as envolve, sobretudo, o tabu religioso. Cristão ou muçulmano.
A retórica de Faranaz Keshavjee deixa tudo na mesma. Ao alegar que entre os muçulmanos grassa a ignorância e o atraso; que, apesar disso, os muçulmanos não são todos iguais; que o papa meteu-os todos no mesmo saco; que o papa não tem autoridade para criticar como o fez, devido à história e à actualidade da igreja católica e ao papel, no mínimo dúbio, desempenhado por Jesus (tal como o teria sido o de Maomé); que a defesa de uma moral pode justificar o uso da violência - ao dizer tudo isto, Faranaz, que aparentemente queria estar fora da categoria de «todos os muçulmanos», mostra, afinal, que nunca saiu do seio daqueles para quem o dogma justifica a espada e que a ideia de «discussão crítica» é uma expressão caricatural que pode existir como boa intenção, mas que não se pode praticar para não ofender as muitas susceptibilidades à flor da pele do povo muçulmano. No fundo, «ismaelita» como faz questão de se declarar - como se fosse necessário declarar que é qualquer coisa… -, Faranaz não quer que a confundam com «outros» muçulmanos, ou sunitas ou xiitas, ou ignorantes, ou atrasados, ou qualquer outra coisa desse lado escuro do islão. Tem todo o direito a não querer ser confundida. Não tem é o direito de não querer que seja discutido tudo o que sobre Maomé diga respeito, mesmo que acene que em contrapartida meterá Jesus pelo meio. Tem todo o direito a fazê-lo.

19 setembro 2006

O caso Maria Filomena Mónica

A questão é: quem é que se sujeitaria a uma entrevista virada para a «avaliação física» dos políticos, «apontando-lhes qualidades e defeitos, lançando farpas»? A resposta de José Fialho Gouveia é uma boa resposta: Maria Filomena Mónica. Porquê? Porque ela já tem currículo na matéria, feito não à custa dos outros, mas à custa de si própria, e pode, portanto, para aquela entrevista, «inspirar-se em si própria», tal como a «sua polémica autobiografia» inspira o jornalista. A escolha para um desafio destes não recai, portanto, sobre uma figura da socialte, mas sobre alguém que é suposto estar exactamente nos antípodas deste tipo de gente, e que, em princípio, forneceria outro género de argumentos. Pois. Filomena Mónica, escudando-se na tradição anglo-saxónica (naquela ideia de que na Inglaterra é que é bom, é que se faz, é que se tem…, etc.), desata o nó górdio vestindo a pele de Maya, qual astróloga a divagar sobre os planetas, e à volta do adultério e das relações, em geral, dos políticos com as mulheres, constrói uma manta de banalidades e de maledicência em que, daquilo que diz, o que é mais surpreendente é exactamente pensar-se ao que as pessoas são capazes de se sujeitarem. E Filomena Mónica nem precisa de «aparecer» nos jornais desta maneira, dada a frequência com que escreve para tudo o que seja imprensa escrita. Possivelmente, nem «sujeição» haverá, pois, com o seu espírito livre que sujeição a amarraria a compromissos que não fossem aqueles que ela quereria assumir? O que remete para a questão inicial: o que faz correr Filomena Mónica?

"Liberty fries"

O sr. congressista Bob Ney, que tinha proposto - na altura do impasse no Conselho de Segurança da ONU e em que a França, aos olhos dos EUA aparecia como o maior obstáculo à sua decisão de invadir o Iraque -, mudar o nome das batatas fritas de french fries para liberty fries, o que daria algo como «batatas fritas da liberdade» em vez de simplesmente «batatas fritas, estava acusado de corrupto no âmbito do processo do lobby de Jack Abramoff. Agora, assinou a sua confissão, reconheceu os seus «pecados» e deixou cair a máscara de político impoluto de quem se esperaria apenas a luta pelo bem dos EUA. Raramente as atitudes radicais e simultaneamente folclóricas não têm por detrás pés de barro. Aquele entusiasmo repentino, a proposta surpreendente, o ir além mais do que era suposto ser razoável, consubstanciam não apenas a gratuitidade e vacuidade do gesto, como definem o carácter de quem toma tal atitude «revolucionária». Bob Ney não era apenas um sabujo de Bush. Era também um político corrupto. Talvez por isso fosse também necessário ser mais Bush que o próprio Bush, e se um queria à viva força invadir o Iraque, outro queria eliminar qualquer vestígio francês em terras do tio Sam. Há gestos inconsequentes que valem pela poeira.

15 setembro 2006

O papa excedeu-se?

O papa Ratzinger, desta vez, arranjou, propositadamente ou não, uma encrenca saudável. Ao fazer considerações sobre Maomé e sobre a jihad, a propósito da paz, isto é, ao observar que sob o ponto de vista teológico, a guerra é incompatível com Deus e, portanto, com a religião em geral e com o islão em particular, Josep Ratzinger, apesar do comunicado do Vaticano desmentindo a intenção de ofender, parece ter provocado uma tempestade cujos contornos lembram a polémica à volta das caricaturas holandesas. As reacções em cadeia por parte dos países muçulmanos, com órgãos de soberania (parlamentos e governos) a pronunciarem-se contra as palavras de Ratzinger e exigindo que este apresente desculpas, num crescendo que parece calculado e sincronizado, levantam a suspeita de que a «guerra» ideológica à volta da verdade religiosa e dos seus protagonistas, sejam eles Maomé ou Ratzinger, instalou-se para entreter nos próximos tempos. Mas, queira-se ou não, lá está a religião no centro das divergências, lá estão os Estados teocráticos a protestarem a blasfémia, lá estarão nas ruas as massas muçulmanas aparentemente descontroladas a gritarem morte a todos os que não veneram Alá…
Por outro lado, à direita parecerá que poderá contar com mais uma cruzada, agora dirigida pelo próprio chefe da igreja católica, que num rasgo de intelectual distraído, expôs porventura um pensamento íntimo e convicto, o que não tem a ver com conservadorismo, mas com a sua qualidade de líder de uma igreja que perde continuadamente militantes e seguidores e que precisa de mostrar, de vez em quando, que ainda existe. À esquerda não se lhe perdoará a ousadia e criticar-se-á a exorbitância da atitude crítica e a natureza da ideia defendida e, se possível, pedir-se-lhe-ão contas sobre as antigas cruzadas que provam à saciedade que, pelos lados do cristianismo, também a ideia de «guerra santa» não lhe é alheia, ainda que historicamente datada. E outras atrocidades e omissões virão à baila para mostrar que, sob este ponto de vista, mais valia que Ratzinger estivesse calado.
Como diria um editorialista, há momentos em que é preciso separar o acessório do secundário e contar com o que une em vez do que separa. Ora, aí está uma excelente ocasião para pôr à prova tão garbosa intenção.

Gisberta (posts em atraso)

A partir do momento em que a acusação pública considerou que nem homicídio por negligência aconteceu na morte de Gisberta, a decisão do juiz de branquear o crime punindo com suavíssimos castigos os adolescentes que durante uma semana se entretiveram a massacrar de forma ultrajante um ser humano, mais não faz do que confirmar que, na ausência sequer de negligência, de facto tudo não passou de um mal entendido, ou como disse, de uma «brincadeira de mau gosto».
De facto, sem o objectivo de matar, portanto, sem a intenção, cai a tese de crime objectivo e ficaria, na ausência de intenção e perante a morte de Gisberta, o homicídio por negligência, mas retirado este enquadramento penal por julgamento da inocência dos adolescentes suspeitos - que agiram por «brincadeira», ainda que de «mau gosto» - nada sobra: nem intenção, portanto, nem malícia nem premeditação, apenas gestos inocentes de adolescentes ingénuos que se portaram de forma mal educada e que precisam de um raspanete para se corrigirem.
O que choca é o abismo que separa os factos que foram tornados públicos sobre o comportamento dos adolescentes e a leveza da pena. O que fere ainda mais qualquer sentido de justiça são os termos que o juiz utilizou para efectuar a desculpabilização pública dos acontecimentos que conduziram à morte de Gisberta. As múltiplas reacções contra a interpretação dos factos realizada no tribunal e contra a decisão deste, são, no entanto, prova de que a consciência pública não aceitou sem mais a decisão nem calou a sua indignação. É forçoso que outro agentes continuem a luta por mais justiça neste caso. O que não traz a vida a Gisberta.

Ser papista na actualidade II (posts em atraso)

Ainda no editorial de JMF, “Investigar ou culpar”, descobre-se que convém «investigar», mas não «culpar». Quer dizer, enfim, apontar aqui e ali algum «excesso», algum «erro» de boa vontade, uma «escorregadela» na legalidade, um «abuso» nos direitos humanos, vá lá que não vá. Agora, pôr-se a «acusar» o Império pela existência de «centros de detenção», de voos «ilegais», de «sequestros» da CIA em países europeus, de tudo o mais que não lembra ao diabo, isso já é fazer o jogo do Islão, colocar-se ao lado dos fundamentalistas religiosos e dos terroristas que usam a liberdade do Ocidente para melhor a destruírem, blablablá… Um papismo deste quilate está naturalmente exposto às mais duras contradições, particularmente, à de o seu Papa vir publicamente desmenti-lo. Foi o que fez Bush, reconhecendo as «prisões secretas» da CIA, portanto, os «transportes secretos» da CIA, e isentando-se do mandato da prática de tortura, como se fosse necessário que, para a tortura se tornar «tortura secreta», o imperador viesse justificar-se lavando as mãos. Depois, tal maniqueísmo e proselitismo intelectual sofrem duros raspanetes inter pares, como este (Editorial de João Morgado Fernandes, “A luta contra o terrorismo”, DN, 8/09/06): «a crítica aos comportamentos nefastos dos EU, na medida em que estes põem em causa os fundamentos do estado de direito, não significa, necessariamente, qualquer desculpabilização ou secundarização desse mal muito maior que é o terrorismo.» Antes, João Morgado Fernandes esclarecera: «Paradoxalmente, alguns intelectuais, com evidente má-fé, consideram que este tipo de críticas aos Estados Unidos debilita o campo da democracia e tende a colocá-los ao mesmo nível dos fundamentalismos religiosos.»

08 setembro 2006

Ser papista na actualidade I

Ser papista na actualidade I

A tese de que os «extremistas» de direita e de esquerda, na falta de outra causa melhor, procuram as suas novas causas no Islão fundamentalista, é pós-moderna no seu próprio enunciado: tudo misturado, agitado como num shaker, e aí está o cocktail explosivo com um novo rótulo, «Somo todos do Hezbollah». Di-lo Rui Ramos no seu artigo «Hoje somos todos do Hezbollah» (Público, 6/9/06), ideia que contrapõe, na sua actualidade, à ideia de que éramos todos americanos ainda há alguns anos. Para ele, «Chegou a altura de os jornais e as revistas começarem a pingar sabedoria sobre «erros», a começar pela remoção [«remoção»?!] de Saddam Hussein em 2003, que teriam comprometido a suposta harmonia pró-americana de Setembro de 2001. Em toda esta história, há, de facto, um erro: o de pressupor que é possível suspender as nossas desavenças políticas, mesmo em nome de qualquer coisa como a defesa da civilização ocidental.»
Nem mais a propósito, José Manuel Fernandes, “Investigar ou culpar”, 6/9/06, querendo distinguir entre a investigação dos voos da CIA e a atribuição de «culpas» aos EUA sobre os voos clandestinos que, entre outras coisas terão levado prisioneiros para Guantánamo, considera «por exemplo, que os Estados Unidos cometeram erros graves na forma como têm vindo a combater o terrorismo», condena «os abusos cometidos nalgumas prisões» e discorda da «existência do centro de detenção [«centro de detenção»?!] de Guantánamo». De um momento para outro, cá está JMF a reconhecer os «erros», o que Rui Ramos considera ser típico do tempo de outro «erro», o de se acreditar «é possível suspender as nossas desavenças políticas, mesmo em nome de qualquer coisa como a defesa da civilização ocidental».