29 dezembro 2006

Privilégios, porque não?

O discurso oficial alega que deve ser tratado de forma diferente o que é diferente, deitando fora, assim, o socialismo igualitário da «Liberté, Egalité, Fraternité». Mas por outro lado, se se dá mais a uns do que a outros, em função da diferença que se apurou existir ou dever existir, começa-se a privilegiar uns em relação a outros, portanto, a criar novos corpos de privilégios, o que significa que o discurso contra a igualdade de privilégios é contraditório com a promoção de recompensas diferentes para situações diferentes, e é criador, por sua vez, de novas desigualdades, agora assentes em novos critérios que não os antigos. Se antes os privilégios assentavam, por exemplo, na igualitarização dos membros de uma classe profissional e nos benefícios que esta teria em relação a outras classes, uma classe sobre recompensada como seria a dos professores, como exemplo mais específico, passa a ser dividida em duas, as dos professores (normais) e a dos professores titulares, sendo que estes serão melhor recompensados que aqueles, com base no critério pós-moderno de rentabilização da relação input/output, isto é, com base na eficácia do investimento e do resultado desse investimento: quanto mais produtivo mais eficaz e menos desperdício; quanto menos produtivo menos eficaz e mais desperdício. Depois, se uns têm um Fundo de Pensões, outros uma Caixa, outros ADSE, etc, o que realmente incomoda é a diversidade contemplada para resolver, no fundo, o mesmo problema. Ora, cada uma destas estruturas é um privilégio para uns e uma diferença em relação aos outros, e como tal pode ser assacada como mais um privilégio que os outros não têm, e se passa a ser imoral apenas uns o deterem, então é fácil, com a argumentação do fim dos privilégios, acabar com essas estruturas, integrando-as no todo da Segurança Social, da Caixa Geral de Aposentações, no Serviço Nacional de Saúde, igualizando tudo e todos, exactamente o resultado oposto do discurso oficial de que é preciso tratar de forma diferente o que é diferente!

28 dezembro 2006

Bocas: O Natal segundo Daniel Oliveira:

Bocas: O Natal segundo Daniel Oliveira:
«…cai-me muito bem o Natal. Gosto da obrigação de ir às compras. De antecipar os desejos mais mesquinhos dos outros. De estar nas filas, de me endividar. Tudo o que realmente interessa exige provação.» «E gosto do consumismo.» (Expresso, 23 Dez 06)
O Daniel não diz «gosto de ir às compras», mas «gosto da obrigação de ir às compras». O Daniel não vai às compras por causa dos «seus desejos», mas por causa dos «desejos mais mesquinhos dos outros.» O Daniel considera que «tudo o que interessa exige provação», e assim justifica, com um ar filosófico e expressão contestatária, que um salário exigirá provação, que a comida exigirá provação, que ir ao cinema exigirá provação, que ler um livro exigirá provação, etc, aplicando-se o mesmo para «tudo o que interessa». Afinal, Daniel é um «consumista», como se confessa. Provavelmente, um «consumista» anticapitalista e, provavelmente também, uma ateu que gosta de aproveitar ao máximo as potencialidades da época. Natalícia, claro.

27 dezembro 2006

A economia do voluntariado

De vez em quando aparece mais uma campanha de voluntariado e a tal ponto se sucedem estas campanhas que não é demais concluir-se que o regime de voluntariado é um regime de moda. Mas seria ter-se em conta apenas uma parte se este regime não fosse visto, para além da moda, como também uma ocupação do tempo por parte das classes que têm tempo. E como algo, um trabalho que é fundamental na nossa sociedade.
De facto, e é isso que interessa aqui e não o lado do investimento emocional e o seu envolvimento psicológico, o tempo constitui a unidade de medida do trabalho, durante o qual é produzido o valor X de mercadorias, ou em geral, de um determinado bem. Ao valor de bens produzidos corresponde um preço, geralmente inferior, traduzido no salário de quem produz esse bem durante essa unidade de tempo. O «tempo é dinheiro» porque o tempo é essa unidade padrão que o capitalismo usa para poder medir a produção de mercadorias, os salários pagos e a mais-valia ganha. Fora disso, o interesse do tempo seria o de nos permitir sentir os diferentes momentos entre o nascer e o pôr-do-sol.
Assim, percebe-se que a economia do voluntariado é equívoca, pois, se por um lado permite a ocupação do tempo, um verdadeiro emprego do tempo por parte das pessoas que voluntariamente querem dispensá-lo em benefício dos outros - e não estão em causa, aqui, as razões aparentes por que as pessoas justificam esse dispêndio do tempo -, por outro, o tipo de actividade, qualquer que seja, envolvida nessa ocupação corresponde ao tipo de trabalho que o capitalismo não assume como tal e que, portanto, não atribui um valor nem preço, alegando que a dádiva e a compaixão (católicas, em Portugal) são a paga suficiente para essa espécie de trabalho não reconhecido como tal. A tal ponto se criou a ideia da necessidade e utilidade do voluntariado que se chegou ao ponto de, se acaso fosse necessário, o voluntário até pagava para fazer essa ocupação do tempo, sem ter a noção, em termos económicos, da enorme poupança que o capital consegue realizar com este tipo de ocupação, que é, efectivamente, de trabalho não reconhecido como tal.
A lógica implacável desta economia, no duplo sentido de «economia», quer como «poupança» quer como «actividade produtiva», é a de assentar maioritariamente no cuidado de pessoas «inúteis», doentes e velhos. Produtivamente inúteis, o capitalismo contempla estas pessoas como um peso morto de que não se pode livrar, mas de que se pode isentar na prestação imediata de cuidados com vista a prolongar a vida ou a suavizá-la, a não ser que a prestação deste tipo de cuidados com estas pessoas possa, por sua vez, dar lucro. Nesta condição, dirigida essencialmente às camadas de trabalhadores que têm ainda poder de compra através das suas reformas e de outros meios, a aposta dos grupos económicos na construção de clínicas e de pequenos hospitais dirigidos a este segmento da população, denuncia a avidez do capital e a oportunidade que este tem de, em tudo, fazer negócio. Necessário, tal como a compaixão do voluntariado enquanto as coisas funcionarem à maneira capitalista. Necessário porque, psicologicamente, faz bem às pessoas sentirem que dão e recebem alguma coisa que escapa - ou quase escapa - ao controlo da terrível concorrência a que o capital as expõe.

19 dezembro 2006

A pressa da «esquerda moderna» e as coisas concretas

Diz E.P.C.: «Ninguém imagina que uma política de esquerda seja apenas um conjunto de princípios abstractos que só lentamente se irão concretizar. Daí que seja desejável que ela [Ségolène Royale] vença as eleições francesas. E que possamos continuar a considerar e a interrogar as suas orientações.» (Público, 19/12)
EPC descobre com Ségolène e Sócrates aquilo que deve fazer uma «esquerda moderna»: «com propostas muito concretas ligadas ao quotidiano das pessoas. Exactamente aquilo de que a esquerda precisa.» Ora:
1. Não são as «propostas concretas» que são de esquerda, ou de direita, nem pelo facto de serem apresentadas por políticos de esquerda as torna de esquerda, sobretudo, quando essas «propostas concretas» surgem como opostas àquilo que seriam os «princípios abstractos», lentos e difíceis de se concretizarem, como se o que se faz nada tenha a ver com o que se pensa (ou não…) As «propostas concretas» são de esquerda ou de direita consoante se inserem numa política de esquerda ou de direita. Mas, para EPC, uma política, que envolve naturalmente princípios «abstractos», é algo dificilmente concretizável, e entre concretizar e não concretizar, pois, que se concretizem propostas concretas, quaisquer que elas sejam! Além do mais, diz sem dizer EPC, o tempo urge, a velocidade é tal que ou se faz agora ou já não há tempo para fazer. Numa palavra: não há um fim para o movimento; o movimento é tudo (Bernstein).
2. Se não se pode ficar à espera da concretização desse «conjunto de princípios abstractos», como se a Liberdade, por exemplo, pudesse ser alguma vez concretizada, absolutamente concretizada, EPC quer resultados imediatos, coisas que se possam fazer e que revelem uma face, uma face sem princípios, a face da «esquerda moderna», a face do pragmatismo, que é a ideologia aparentemente sem ideologia, mas que na realidade é a ideologia dos resultados: se resultou é bom, se não, não é. Esta é a primeira traição do pontapé de EPC nos princípios: a ideologia do fazer sem ideologia, já é uma ideologia. Segundo: a urgência do tempo. É preciso fazer coisas concretas porque não se pode ficar à espera dos princípios. Trata-se de um argumento pela economia, pela economia do tempo, e porque o tempo é dinheiro, capitalisticamente falando, então, também se trata da economia capitalista do tempo. Pergunta Lyotard: «ganhar tempo, será um fim universalmente válido?» Tanto se «ganha tempo» ao antecipar como a adiar, consoante as situações. Mas sob o ponto de vista do capital, quanto mais tempo passar no mais curto espaço de tempo, o que quer dizer o mais depressa possível, melhor: o juro, o lucro, o rendimento está a realizar-se e a data de pagamento chegou! Toda a performance deve ter resultados imediatos, visíveis e rentáveis. Ponto final. Assim, para que servem os princípios?! Para que serve o pensamento? Se as «propostas concretas» não têm uma lógica identificadora, o que é que as torna de esquerda? A simples afirmação de que são de esquerda?

10 dezembro 2006

Bolsas de estudo: quantas e para quem?

Ainda não há muito tempo, quando o poder de aumentar as propinas foi «deslocado» do Ministério do Ensino Superior para as Universidades, um dos argumentos atirados com o maior dos à vontades foi o de que as Universidades providenciariam no sentido de serem criadas as bolsas de estudo necessárias para que nenhum estudante pudesse alguma vez deixar de estudar pela simples razão de não ter dinheiro para isso, para pagar propinas, livros, alimentação, alojamento, etc. Depois destas promessas, a questão é, passado este tempo experimental, quais os resultados? Quantos estudantes concorreram às bolsas de estudo e as ganharam? Quantos viram recusados os seus pedidos? Em que Universidades? Em que Faculdades? Em que cursos? Mais: dos estudantes a quem foi recusada a bolsa, quantos deles acabaram (se é que houve algum) por desistir dos cursos em que estavam inscritos?
Há ainda uma pergunta a juntar àquelas e que era interessante encontrar respostas: quantos estudantes com capacidades para singrarem no ensino superior desistem, à partida, após os exames do secundário, sem sequer se preocuparem em se inscrever nas candidaturas ao ensino superior?
Os srs. reitores das Universidades clamam pelo subsídio de Natal para os seus professores. Nunca se os ouviram a fazer o mesmo para as bolsas de estudo dos seus estudantes que merecendo-as não as têm.

05 dezembro 2006

Estudo sobre o aborto clandestino

Depois de convocado o referendo sobre o aborto, teria todo o sentido que os resultados do estudo sobre o aborto clandestino em Portugal estivessem disponíveis. Seriam mais um argumento a juntar a tantos outros, mas com a vantagem de ser um argumento novo, pois, este estudo deveria produzir resultados fiáveis pela primeira vez em Portugal.
Miguel Oliveira da Silva diz isto, nas suas «Sete Teses sobre o Aborto», Caminho: «Oxalá que o estudo, que, segundo parece, foi finalmente, após três anos de hesitações, autorizado pela Comissão Parlamentar da Saúde em 7-6-2005, consiga, de facto, realizar o levantamento exaustivo sobre o que se passa no nosso país. E, se bem que o custo inicial de 1500 000 euros tenha acabado por ser reduzido para 400 000 (80 000 contos em moeda antiga), é de esperar que, ganhe quem ganhar o concurso público (seja o ISEG, seja a Universidade Católica, seja quem for), tenha o engenho e arte para cumprir e honrar o caderno de encargos que terá aceite.» (pág. 35.)
«Parece», diz Oliveira da Silva. Terá sido tudo uma ilusão? Nem ISEG, nem Católica, nem Comissão da Saúde da AR, nem 400 000 euros?!

04 dezembro 2006

Referendo do Estatuto dos professores do ensino não superior?

A Fenprof anunciou, após o fim das conversações com o Ministério da Educação, que «continuaria a luta», solicitando «pareceres» (que estão na moda), e promovendo uma «Consulta/Referendo Nacional junto dos professores e educadores portugueses, em Janeiro próximo solicitando-lhes que manifestem a sua posição face ao ECD imposto pelo Ministério».
Esta será, porventura, a mais poderosa arma que os professores têm para gastar sem se desgastarem ainda mais junto da opinião pública com greves e outras acções aparatosas, mas de duvidosa eficácia. Promovendo um referendo, os sindicatos devolvem a palavra à classe dos professores e, simultaneamente, deixam de aparecer como uma espécie de corpo sem qualquer relação com a classe que dizem defender, dando-lhe a última palavra sobre a rejeição ou aceitação do Estatuto da Carreira Docente. Se os professores recusarem o Estatuto e houver uma forte mobilização na consulta, nem a ministra poderá utilizar a estafada ideia de que os professores aceitam o Estatuto e os sindicalistas é que o rejeitam, nem o Estatuto, ele próprio, será um documento incólume às vicissitudes da sua rejeição pelos professores que, rejeitando-o, de alguma forma o deslegitimam.
Porém, se pelo contrário o Estatuto for aprovado em condições de forte participação dos professores, então o problema fica arrumado e mais vale que não se fale mais do assunto. Excepto, eventualmente, para justificar a derrota dos sindicalistas e a apresentação do pedido da sua demissão e a convocação de novas eleições nos respectivos sindicatos.

03 dezembro 2006

Adoradores de homens

Sempre houve e sempre haverá quem, sem nenhuma razão aparente, siga os passos dos outros nos caminhos abertos por estes. Múltiplas razões existem para que isso aconteça, às vezes inimagináveis e por isso mesmo difíceis de identificar, mas podemos, pelo contrário, identificar uma boa razão pela qual não se deve seguir as palavras de outro homem, pelo menos à primeira: o juízo crítico, a necessidade de pensar pela própria cabeça. É esta característica que emancipa os homens uns dos outros e os torna simultaneamente dignos de partilharem ideias, discutindo-as. A discussão crítica, essa herança divina que os gregos deixaram, é que permite que em vez de bajulação haja desconfiança intelectual, e que em vez de crença haja a perplexidade que alimenta as perguntas. Nada disto existe se em vez dessa criteriosa atitude for adoptada aquela que se sente abençoada, protegida e quiçá iluminada por outra natureza diferente da humana, como se tudo se resumisse em abrir a boca de espanto e em ficar cego perante as palavras de outro homem, mesmo que esse homem se chame agora Bento XVI. Isto, a adoração de homens, que para uns pode ser execrável é, no entanto, para outros uma prática e uma atitude perante o poder secular e temporal. Os mobilizadores de massas têm sempre os seus adoradores convictos, sejam eles políticos ou jornalistas.

02 dezembro 2006

O Público, as mães e as outras

Uma página de publicidade a um livro, seu ou dos outros, não custa nada a um jornal e nem parece mal. Agora, se o jornal é o Público, um jornal de «referência», e o livro «A Mãe na Poesia Portuguesa», ainda que uma «antologia inédita» de Albino Martins, então é preciso começar a desconfiar, ainda por cima vivendo-se numa época em que se travará, em Portugal, mais uma guerra à volta do aborto. Estranhamente, o dispositivo do anúncio com um singelo «Obrigado eu.» a meio da página, parece um argumento daquele discurso anti-aborto em que o adulto actual agradece por ter nascido, ou por ter tido a oportunidade de nascer. «Neste Natal», o «Público presta a merecida homenagem a todas as mães», e ao fazê-lo parece esquecer-se das outras mulheres, das que não são mães, qualquer que seja a razão, das que nunca o foram, das que nunca o serão. Quer dizer que o sentido de oportunidade desta «homenagem às mães» é forçado e extemporâneo, a não ser que o Público vá fazer o que a Renascença já fez, mas não tenha ainda tido a coragem para vir anunciá-lo e, por enquanto, vai avançando com estes pequemos passos de homenagens, a ver o que é que dá.
Tudo isto pode ser perfeitamente inocente. Mas nos tempos que correm e por causa dos afrontamentos, mais vale desconfiar e prevenir.