27 dezembro 2006

A economia do voluntariado

De vez em quando aparece mais uma campanha de voluntariado e a tal ponto se sucedem estas campanhas que não é demais concluir-se que o regime de voluntariado é um regime de moda. Mas seria ter-se em conta apenas uma parte se este regime não fosse visto, para além da moda, como também uma ocupação do tempo por parte das classes que têm tempo. E como algo, um trabalho que é fundamental na nossa sociedade.
De facto, e é isso que interessa aqui e não o lado do investimento emocional e o seu envolvimento psicológico, o tempo constitui a unidade de medida do trabalho, durante o qual é produzido o valor X de mercadorias, ou em geral, de um determinado bem. Ao valor de bens produzidos corresponde um preço, geralmente inferior, traduzido no salário de quem produz esse bem durante essa unidade de tempo. O «tempo é dinheiro» porque o tempo é essa unidade padrão que o capitalismo usa para poder medir a produção de mercadorias, os salários pagos e a mais-valia ganha. Fora disso, o interesse do tempo seria o de nos permitir sentir os diferentes momentos entre o nascer e o pôr-do-sol.
Assim, percebe-se que a economia do voluntariado é equívoca, pois, se por um lado permite a ocupação do tempo, um verdadeiro emprego do tempo por parte das pessoas que voluntariamente querem dispensá-lo em benefício dos outros - e não estão em causa, aqui, as razões aparentes por que as pessoas justificam esse dispêndio do tempo -, por outro, o tipo de actividade, qualquer que seja, envolvida nessa ocupação corresponde ao tipo de trabalho que o capitalismo não assume como tal e que, portanto, não atribui um valor nem preço, alegando que a dádiva e a compaixão (católicas, em Portugal) são a paga suficiente para essa espécie de trabalho não reconhecido como tal. A tal ponto se criou a ideia da necessidade e utilidade do voluntariado que se chegou ao ponto de, se acaso fosse necessário, o voluntário até pagava para fazer essa ocupação do tempo, sem ter a noção, em termos económicos, da enorme poupança que o capital consegue realizar com este tipo de ocupação, que é, efectivamente, de trabalho não reconhecido como tal.
A lógica implacável desta economia, no duplo sentido de «economia», quer como «poupança» quer como «actividade produtiva», é a de assentar maioritariamente no cuidado de pessoas «inúteis», doentes e velhos. Produtivamente inúteis, o capitalismo contempla estas pessoas como um peso morto de que não se pode livrar, mas de que se pode isentar na prestação imediata de cuidados com vista a prolongar a vida ou a suavizá-la, a não ser que a prestação deste tipo de cuidados com estas pessoas possa, por sua vez, dar lucro. Nesta condição, dirigida essencialmente às camadas de trabalhadores que têm ainda poder de compra através das suas reformas e de outros meios, a aposta dos grupos económicos na construção de clínicas e de pequenos hospitais dirigidos a este segmento da população, denuncia a avidez do capital e a oportunidade que este tem de, em tudo, fazer negócio. Necessário, tal como a compaixão do voluntariado enquanto as coisas funcionarem à maneira capitalista. Necessário porque, psicologicamente, faz bem às pessoas sentirem que dão e recebem alguma coisa que escapa - ou quase escapa - ao controlo da terrível concorrência a que o capital as expõe.