29 março 2008

O apelo da caverna

José Miguel Júdice, ao contrário de David Justino que se retirou para a contemplação, sentiu o apelo da prática, a que se dá o nome de «dever de cidadania» e ainda de «participação democrática». Eis como Júdice descreve esse apelo (‘P’, ‘Virgens, avales e cinismo’, 25/5/2007):
«Não tenho dúvidas de que a solução mais cómoda ou prudente (ninguém podendo saber a priori qual a mais eficaz) é nunca descer do "plano etéreo", seja ou não Cassandra a figura inspiradora para essa (in)acção. (…) Mas a outra face desta moeda (da, pelo menos aparente, comodidade) é que algumas vezes se começa a sentir um difuso mal-estar, uma espécie de vergonha cívica, e a nossa alma é invadida por uma estranha espécie de urticária moral e de eczemas de responsabilidade social. Não resistir a esta pulsão ou comichão é, então, uma tentação e um desafio, que as mais das vezes acaba mal, com a sensação de que não valia a pena, que era inútil ou impossível, pelo caminho se sacrificando algum prestígio e alguma influência, ainda por cima num altar que se revelou ser de ídolos e não de deuses.
Eu sei que às vezes é assim, que também já mordi o chão e berrei para dentro, pela estupidez de ir atrás do que julgava ser o meu dever, como as crianças vão atrás do choro.»
O tom que Júdice apresenta no seu argumento distancia-se da esfera política para situar-se no da «responsabilidade social», invocando para tanto o seu estado de alma e até certas perturbações somáticas, incluindo também a sua dolorosa experiência passada. Mas é esta «outra face da moeda» que constitui um saber que dá a Júdice a coragem de se lançar no tédio do mundo, pois, não está enganado, sabe o que o espera e sabe que o nível a que se vai situar não é o dos «deuses» mas o dos «ídolos».
O contraste entre Justino e Júdice é flagrante: um sentiu-se farto do mundo; outro sentiu-se convocado pelo mundo. Desde Platão que os homens que ascenderam a uma espreitadela para o mundo que existe fora da caverna se sentem tentados ou a ficarem fora dela, ou a regressarem em força para o seu interior com vista a dissuadir os que ficaram a fazer como eles e a olharem também para fora e a saírem. Justino julga que fora da caverna é que é bom. Júdice interpelado pelas sombras do interior da caverna julga que mesmo correndo o risco da sua imolação na praça pública não pode recusar esse apelo. E eis como desde sempre o homem se dividiu entre ficar na simples contemplação, afastado da multidão, ou mergulhar na práxis da coisa pública. David Justino e Miguel Júdice são dois exemplos recentes destas duas atitudes que respeitam a diferentes concepções do seu lugar no mundo. Pelo menos em certas fases das suas vidas.