24 setembro 2006

O discurso de um «Membro da Comunidade Ismaelita»

Faranaz Keshavjee, membro da comunidade ismaelita, elabora Sobre o Discurso do Papa Bento XVI (Público, 18/09/06), a retórica seguinte. Primeiro, lamenta as reacções de «alguns muçulmanos» que pelo mundo fora tocam as raias da «irracionalidade», e reconhece que os «muçulmanos que «reagem de formas igualmente tristes e ridículas, reagem de forma invariavelmente ignorante». De seguida, vira-se para o papa e considera que «não esperava» que o «líder de uma religião seguida por milhões de crentes recorresse a um exemplo da história ignorando o pluralismo e diversidade da realidade como são as várias sociedades muçulmanas». A autora estabelece, deste modo, uma simetria entre a ignorância das «reacções dos muçulmanos» e a «ignorância» do papa sobre a realidade muçulmana.
O que custa verdadeiramente à autora é aceitar que os muçulmanos sejam tratados da mesma maneira. Ela não nega os «problemas no mundo islâmico». Ela acha «importantíssimo» que os muçulmanos procurem o «sucesso intelectual, tecnológico e científico». Ela «considera urgente» que os muçulmanos «façam um esforço para questionar muitos dos seus dogmas e aprendam a racionalizar a fé e a estimular as capacidades da razão». Reconhecer isto é, contudo, «diferente do que generalizar e amalgamar todos os muçulmanos» esquecendo o «pluralismo e a diversidade que os caracteriza», e é diferente de «posicioná-los a todos, indiferentemente, no pólo extremo da realidade moderna, referindo-se ao seu fundador como o causador de todos os males e violências da modernidade.» Isto, segundo a autora, é que é «um tipo de violência que pode promover outros tipos de violência». Ora, era precisamente aqui que Faranaz queria chegar. Para ela, a reacção violenta pode justificar-se e cita esta passagem do livro de Reuven Firestone: «A Guerra Santa é uma sub-categoria da guerra ideológica em que a agressão é levada a cabo contra as ameaças aos valores sagrados de uma visão do mundo». Acabará o seu artigo prevenindo: «é preciso ter cuidado como que dizemos».
E a questão é esta: podem as palavras do papa serem pretexto para uma «guerra santa»? Para a violência das ruas? Para a chantagem dos «pedidos de desculpas»? A ironia é a de que as palavras do papa criticavam precisamente o facto de Maomé ter espalhado a mensagem da jihad. A autora alega ainda que o papa «escolheu falar dos outros e preferiu ignorar os erros da sua própria igreja», e acrescenta que esses erros «se vão repetindo, de resto até hoje». O mesmo é dizer que pelo facto de existirem erros num campo, deduzir-se-ia que este campo ficava impossibilitado de criticar os erros de outro campo, o que é manifestamente redutor sob o ponto de vista da legitimidade da argumentação. Não querer que se discuta, é uma coisa, e isso fá-lo agora o islão como já o fez a igreja católica. Seleccionar quem pode discutir é outra, e esta selecção, a haver, não pode ser feita por uma das partes interessadas. O mundo islâmico não pode querer fixar quem pode ou não pode criticá-lo, nem o que pode ou não pode ser criticado, por muito que se alegue que as palavras são violentas. Pior que a violência das palavras é o tabu que as envolve, sobretudo, o tabu religioso. Cristão ou muçulmano.
A retórica de Faranaz Keshavjee deixa tudo na mesma. Ao alegar que entre os muçulmanos grassa a ignorância e o atraso; que, apesar disso, os muçulmanos não são todos iguais; que o papa meteu-os todos no mesmo saco; que o papa não tem autoridade para criticar como o fez, devido à história e à actualidade da igreja católica e ao papel, no mínimo dúbio, desempenhado por Jesus (tal como o teria sido o de Maomé); que a defesa de uma moral pode justificar o uso da violência - ao dizer tudo isto, Faranaz, que aparentemente queria estar fora da categoria de «todos os muçulmanos», mostra, afinal, que nunca saiu do seio daqueles para quem o dogma justifica a espada e que a ideia de «discussão crítica» é uma expressão caricatural que pode existir como boa intenção, mas que não se pode praticar para não ofender as muitas susceptibilidades à flor da pele do povo muçulmano. No fundo, «ismaelita» como faz questão de se declarar - como se fosse necessário declarar que é qualquer coisa… -, Faranaz não quer que a confundam com «outros» muçulmanos, ou sunitas ou xiitas, ou ignorantes, ou atrasados, ou qualquer outra coisa desse lado escuro do islão. Tem todo o direito a não querer ser confundida. Não tem é o direito de não querer que seja discutido tudo o que sobre Maomé diga respeito, mesmo que acene que em contrapartida meterá Jesus pelo meio. Tem todo o direito a fazê-lo.