15 setembro 2006

O papa excedeu-se?

O papa Ratzinger, desta vez, arranjou, propositadamente ou não, uma encrenca saudável. Ao fazer considerações sobre Maomé e sobre a jihad, a propósito da paz, isto é, ao observar que sob o ponto de vista teológico, a guerra é incompatível com Deus e, portanto, com a religião em geral e com o islão em particular, Josep Ratzinger, apesar do comunicado do Vaticano desmentindo a intenção de ofender, parece ter provocado uma tempestade cujos contornos lembram a polémica à volta das caricaturas holandesas. As reacções em cadeia por parte dos países muçulmanos, com órgãos de soberania (parlamentos e governos) a pronunciarem-se contra as palavras de Ratzinger e exigindo que este apresente desculpas, num crescendo que parece calculado e sincronizado, levantam a suspeita de que a «guerra» ideológica à volta da verdade religiosa e dos seus protagonistas, sejam eles Maomé ou Ratzinger, instalou-se para entreter nos próximos tempos. Mas, queira-se ou não, lá está a religião no centro das divergências, lá estão os Estados teocráticos a protestarem a blasfémia, lá estarão nas ruas as massas muçulmanas aparentemente descontroladas a gritarem morte a todos os que não veneram Alá…
Por outro lado, à direita parecerá que poderá contar com mais uma cruzada, agora dirigida pelo próprio chefe da igreja católica, que num rasgo de intelectual distraído, expôs porventura um pensamento íntimo e convicto, o que não tem a ver com conservadorismo, mas com a sua qualidade de líder de uma igreja que perde continuadamente militantes e seguidores e que precisa de mostrar, de vez em quando, que ainda existe. À esquerda não se lhe perdoará a ousadia e criticar-se-á a exorbitância da atitude crítica e a natureza da ideia defendida e, se possível, pedir-se-lhe-ão contas sobre as antigas cruzadas que provam à saciedade que, pelos lados do cristianismo, também a ideia de «guerra santa» não lhe é alheia, ainda que historicamente datada. E outras atrocidades e omissões virão à baila para mostrar que, sob este ponto de vista, mais valia que Ratzinger estivesse calado.
Como diria um editorialista, há momentos em que é preciso separar o acessório do secundário e contar com o que une em vez do que separa. Ora, aí está uma excelente ocasião para pôr à prova tão garbosa intenção.