17 outubro 2006

Rivolição

Por muito experiência que tenhamos da surpresa, nunca estamos completamente prevenidos para não sermos surpreendidos por discursos que ultrapassam a rotina. A síntese (Público, 17/10/06) do manifesto dos ocupantes do Rivoli é bastante significativa a este propósito. O primeiro ponto diz: «Garantias de que o Rivoli não será gerido e programado em função da maior ou menor rentabilidade dos espectáculos, da submissão aos interesses do executivo da câmara, da visibilidade mediática ou da pretensa acessibilidade.» A utopia da cultura está toda aqui contida: não há nenhum requisito que condicione a gestão e programação da instituição cultural, nem «rentabilidades», nem «interesses do executivo», nem «mediatismos» nem sequer o juízo do público sobre se a programação é acessível ou exigente, se é clássica ou popular, se é para todos ou só para alguns. Nada disto, apenas o espectáculo incondicionado, de forma absoluta, porventura, finalmente, a realização do sonho nietzschiano da obra de arte completa do criador que é simultaneamente a obra e o seu espectador. Imagine-se, eles, os da Rivolição, criando a obra que contemplam, hoje, aqui e agora, autores da obra absoluta não sujeita a qualquer critério de apreciação estética nem submetida a qualquer critério de avaliação de qualquer espécie, criadores absolutos, donos exclusivos de si próprios, senhores da imaginação criadora total, sublimes de génio criativo como só os deuses poderiam se existissem, e, espectadores singulares da sua própria obra e da sua capacidade criadora, narcísicos neuroticamente apaixonados, incondicionalmente, por si próprios e pela sua própria obra, como se a obra de arte que se cria, que se faz e se contempla, simultaneamente, devesse ser completa, utópica, incondicional, absoluta. Nem Nietzsche teria pensado na violência de tanta perfeição para a criação estética, na necessidade extrema da afirmação do incondicionado na criação artística.
A segunda exigência dos ocupantes da Rivolição não é menos surpreendente: «Garantias de que os núcleos de produção da cidade terão acesso e lugar no seu teatro municipal, sem prévia censura política e segundo critérios que visem tão-só a manutenção de uma programação de qualidade.» Baixando um pouco à terra, estabelece-se que todos têm acesso ao Rivoli, que é assumidamente de todos, do povo, da cidade, deles, de quem quiser estar no «seu teatro municipal», desde que aceite «critérios» com um único objectivo, o da «qualidade». Não faria sentido que outro critério pudesse ser estipulado depois de se ter querido o incondicionado da arte. Mas, há sempre um problema à volta da qualidade, pois, se esse problema não está na obra de arte acaba por se encontrar no público - que não é utopicamente perfeito - que aprecia a obra de arte, do que resulta a necessidade de este ser «educado», formado, alimentado pelo gosto da obra de arte perfeita e que ele, à partida, não entende, o que não constitui um problema de «acessibilidade» da obra, mas um problema de formação de públicos, algo já há muito detectado na média da qualidade dos espectadores por essa Europa fora. A terceira exigência do manifesto da Rivolição vai neste sentido da educação do público: «Garantias de que a direcção do Rivoli pugnará pela formação contínua do público». A ideia é simples: se a obra de arte não conquista o público, então o público tem de ser educado para a obra de arte.
Estas reivindicações são utopicamente de outro mundo e no entanto necessárias para nos surpreenderem pelos sonhos que acarretam. Para não ficarmos apenas surpreendidos pelos 50000 portugueses que já terão visto o Filme da Treta.