11 abril 2006

O «eu» e o respeito do «outro»

Boaventura Sousa Santos terá dito, a propósito da polémica e da crise das caricaturas, que «o respeito pelo outro é auto-limitativo», pois, «reconheço no outro a recusa do insulto tal como eu queria para mim» (DN, 9/04/06). Peguemos na primeira frase, a do «respeito auto-limitativo»: nada disto é concebível se nos ativermos à realidade das coisas; poder-se-á conceber a falta de respeito do escravo em relação ao senhor como «auto-limitativa» do escravo? Limitativa da «liberdade» do escravo? Da «liberdade» do senhor? E a falta de respeito do senhor em relação ao escravo também será «auto-limitativa»? Claro que também teria de o ser! Mas a «liberdade» do senhor e a do escravo são exactamente a mesma? Novamente, claro que não! Então o que é que se passa, para se ultrapassar esta falta de respeito mútua entre o «eu» e o «outro»? Simplesmente, o «eu» e o «outro», ou o «outro» e o «eu» têm de afirmarem-se, negando-se, o «eu» para o «outro» e o «outro» para o «eu», o mesmo é dizer que o escravo afirma-se com o senhor e nega-se contra o senhor, e vice-versa. Isto quer dizer que, contrariamente à propalada ideia de que a «minha liberdade começa onde acaba a dos outros», o que equivale para o «respeito», mutatis mutandis, a minha liberdade começa e acaba em mim com os outros, numa relação em que tirando um dos termos, se tira toda a relação. A liberdade do escravo faz-se com o senhor, nem que seja contra o senhor… Isto é hegelianismo puro.
Quanto à segunda frase, a de que «reconheço no outro a recusa do insulto tal como eu queria para mim», trata-se de uma formulação disfarçada do imperativo categórico kantiano, que, em termos populares se expressa assim: «não faças aos outros o que não queres que te façam». É o que Boaventura diz, por outras palavras: «não insulto o outro tal como não quero que ele me insulte», o que, vistas as coisas, não é senão o prolongamento do raciocínio anterior, isto é, a incapacidade kantiana de resolver a contradição do «eu» e do «outro», deixando o «eu» e o «outro» à frente um do outro e à beira de um ataque de nervos, como bem explicou Hegel.